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Vargas Llosa: "Os ditadores e o erro do povo chileno"

Postado às 08h56 | 02 Jan 2022

Vargas Llosa

Recusei o encontro com o jornal francês que publicou o texto dos cinco professores que protestaram contra minha eleição para a Academia Francesa, mas reconheço que tal protesto foi legítimo. Ainda assim, de acordo com os jornais peruanos, esses professores me tacharam de “pinochetista”, coisa que nunca fui. No próprio dia do golpe de Pinochet, em 1973, ataquei-o duramente na televisão francesa e devo ter assinado, além disso, cerca de vinte manifestos protestando contra os crimes cometidos pela ditadura chilena, que critiquei de Santiago, no Chile, manifestando minha solidariedade aos seus adversários. 

Tenho, desde menino, uma aversão visceral a todos os ditadores que lançaram sua sombra na história política da América Latina e impediram a realização do sonho de Bolívar, uma união continental nos moldes dos Estados Unidos.

Antes mesmo de eu usar a razão, na minha família já éramos inimigos dos ditadores. O ditador da vez no Peru, General Odría, tinha deposto em um golpe militar o Dr. José Luis Bustamante y Rivero, parente do meu avô materno.

Havia na família um culto heróico à figura de José Luis Bustamante y Rivero. Por ser elegante e eloquente, como bom arequipeño, por se vestir bem e pelo cuidado que tinha também om as palavras que dizia, e com os erres de Arequipa que ninguém em Lima era capaz de pronunciar. Eu já o tinha visto e até falara com ele, em uma ocasião em que José Luis era embaixador do Peru em La Paz e veio se hospedar na nossa casa, em Cochabamba, onde meu avô era cônsul do Peru. Sempre lembrava da bela gorjeta que chegou às minhas mãos quando José Luis partiu, com seu chapéu sombrerito e os óculos que impunham tanto respeito quanto seus esplêndidos discursos.

Ele tinha sido um luxo de presidente até que as garras de Odría, e seus tanques, só lhe permitiram exercer a presidência do Peru, que ele ganhara legitimamente, por três dos cinco anos para os quais ele fora eleito pelos peruanos.

Cresci odiando Odría, como toda a família da minha mãe, e daí me vem o rechaço a esta espécie horrenda: os ditadores que, naquela época (agora estão voltando), eram a praga da América Latina. Ainda não tinha lido Jan Valtin, que seria meu primeiro mentor político, mas já detestava esses generais que acreditavam que a presidência do país lhes correspondia em função do generalato e, para tanto, dispunham dos tanques.

Os ditadores me afastaram do partido comunista, no qual militei durante o primeiro ano da Universidade de San Marcos, e de Cuba, apesar das muitas respostas que recebi defendendo as eleições livres e o direito de cada povo escolher seus governantes por meio de pleitos legítimos.

Este tem sido um eterno mal-entendido com os militantes da extrema esquerda: sua convicção de que havia ditadores “bons”, como Stalin ou Fidel Castro. Acredito, e esta é uma das convicções às quais me mantive fiel na minha vida política, que todos os ditadores, sejam de direita ou esquerda, são péssimos, autores de todo tipo de atropelo e roubo, e que os países que alcançaram a civilização política não elegem ditadores, permitindo em vez disso que o povo escolha seus presidentes em eleições livres e genuínas.

O líder cubano foi um orador empolgante e conhecido por seu longos discursos. Sua carreira política foi marcada por frases contundentes que entraram para a história, como "Pátria ou morte, Venceremos", pronunciada em um ato de luto pelas vítimas da explosão do barco "La Coubre", em Havana, em março de 1960 Foto: Desmond Boylan |Reuters

É claro que os povos podem se equivocar, como ocorreu na Venezuela ou em Cuba, e escolher mal nas eleições, erros que tendem a produzir consequências nefastas para esses povos, que levam anos para corrigi-las.

Os regimes democráticos podem se equivocar, e o exemplo que os peruanos acabam de dar é mais que suficiente para ilustrar isso. Os peruanos já elegeram, contando até com meus próprios votos, um grande número de ladrões, acreditando tratar-se de pessoas dignas. Mas tais erros podem ser corrigidos com o tempo, foram corrigidos e serão corrigidos, enquanto que em uma ditadura uma retificação é muito mais difícil, pois conta com essas pessoas convencidas de que a justiça social passa por um regime autoritário, ainda que tal desenvolvimento jamais tenha sido demonstrado.

Por isso prefiro os regimes democráticos em lugar das ditaduras, sejam elas de direita ou de esquerda, que se confundem e confundem suas vítimas. As medíocres democracias são preferíveis, ainda que apresentem muitas deficiências, entre as que prevalecem, sobretudo nos países desenvolvidos, as mãos grandes dos governantes eleitos ou por eleger. Há mais oportunidades de mandá-los para a prisão nesses regimes débeis do que nas solenidades e segredos que guardam suas vergonhas para determinadas ocasiões. E, como temos inúmeros exemplos, para quando os ditadores já estejam mortos ou enterrados.

A mais medíocre democracia é preferível à mais perfeita ditadura, seja ela encabeçada por Pinochet ou Fidel Castro. Esta é minha bandeira e por isso defendo as imperfeitas democracias contra todas as ditaduras, sem exceção. Esta é uma escolha muito simples, e aqueles que me julgam politicamente precisam ter isso em conta com clareza.

Agora o Chile acaba de celebrar eleições e, para mim, não há dúvida que, no momento presente, a maioria dos eleitores chilenos cometeu um grave equívoco. O Chile vinha sendo um exemplo para os liberais de todo o mundo. Por isso nos surpreendeu tanto a violência das manifestações nas quais uma multidão incendiou edifícios e estações de metrô. Nada parecia indicar que esta seria a resposta popular a uma economia em crescimento, na qual todas as forças políticas, sem exceção, pareciam estar de acordo. Ao que parece, as coisas não eram assim, o que surpreendeu a todos. O que ocorrera para que um país aparentemente privilegiado na América Latina mostrasse um rosto tão diferente e feroz?

Defendi a candidatura de Kast, que me parecia representar uma continuação sensata da política econômica que levou o Chile a quase alcançar certos países europeus e a se distanciar muito do restante da América Latina. Por isso, acredito que os chilenos, dando uma vitória expressiva a Boric, cometeram um equívoco. Mas seu direito de se equivocar deve ser levado em conta e respeitado. Algo devia andar mal para que Boric obtivesse uma vitória tão clara e expressiva. Principalmente, levando em consideração que as críticas de Boric diziam respeito à política econômica, em primeiro lugar, e nisso o eleitorado chileno parece ter lhe dado a razão.

É muito desconcertante, sem dúvida, que um país rechace de maneira tão evidente algo que parecia lhe trazer múltiplos benefícios. Mas assim são as coisas da vida política: algo tão inesperado e surpreendente quanto o que ocorreu no país. Em todo caso, esta nova política, que corrige a anterior, deve ser colocada em prática mesmo que traga consequências muito negativas para o país que parecia crescer de maneira sistemática nos anos mais recentes. Logo o Chile terá tempo para corrigir seu erro, caso tenha errado, e preservar os feitos alcançados graças à política que foi agora derrotada.

Estas são minhas convicções. Posso estar enganado, mas, em todo caso, meus erros respondem a uma ideia que me parece ser profundamente democrática: os povos têm o direito de errar. Em uma democracia, tais erros podem ser retificados e emendados.

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