Postado às 06h48 | 08 Jan 2021
Estado
Se ainda havia dúvidas, as inacreditáveis cenas do assalto ao Capitólio, sede do Poder Legislativo dos Estados Unidos, ocorrido na tarde de quarta-feira passada em Washington, confirmaram de forma cabal o perigo da política de ressentimento estimulada pelo chamado tecnopopulismo, do qual o presidente americano, Donald Trump, é o maior expoente.
Atônitos, milhões de pessoas em diversos países puderam acompanhar em tempo real os danos que vândalos da democracia como Trump e seus imitadores mundo afora são capazes de causar. Eles vão muito além do estímulo à polarização política e à subversão da verdade factual nas redes sociais, o que já seria grave por si só. O ódio que essas lideranças populistas promovem contra as instituições democráticas, o que chamam de “sistema”, a diversidade e todos que não pertençam ao “povo” encarnado pelo líder ungido, se traduz em violência e morte.
Enquanto o Congresso dos Estados Unidos realizava uma sessão conjunta para certificar a eleição de Joe Biden como o 46.º presidente americano, um ato que em condições normais seria meramente protocolar, o presidente Donald Trump proferia um de seus mais virulentos discursos contra o que chamou de “eleição roubada”. Furioso porque seu vice, Mike Pence, simplesmente decidiu cumprir a Constituição e se recusou a participar da sedição que o manteria no poder, Trump afirmou que “jamais aceitaria” a derrota e insuflou uma horda de extremistas a “lutar” de forma “patriótica” contra a “fraude” da qual diz ser vítima.
Não houve fraude alguma na eleição presidencial dos Estados Unidos. Trump não passa de um mau perdedor e, a partir de agora, de um golpista malsucedido. Sua manutenção no poder, ainda que por mais poucos dias, representa um enorme perigo. Donald Trump deve ser impedido ou retirado da presidência de acordo com a 25.ª Emenda à Constituição americana, que prevê que o presidente pode ser destituído por incapacidade de desempenhar suas funções após uma declaração conjunta de seu vice e da maioria dos membros de seu Gabinete.
A responsabilidade pelo que aconteceu em Washington é exclusiva de Trump. “Palavras de um presidente têm peso”, disse o presidente eleito, Joe Biden. “Hoje vimos de um jeito duro o quão frágil é a democracia. Para preservá-la são necessárias pessoas de boa vontade e líderes com coragem, que se dediquem não a perseguir o poder e os interesses pessoais a qualquer custo, mas sim o bem comum”, disse o presidente eleito.
Controlada a invasão do Capitólio pelos radicais trumpistas – um rematado ato de terrorismo doméstico que culminou na morte de pelo menos 4 pessoas e na prisão de mais de 50 –, o Congresso retomou a sessão conjunta e certificou a decisão do Colégio Eleitoral, que em 14 de dezembro elegeu a chapa democrática formada por Joe Biden e Kamala Harris. A posse ocorrerá no próximo dia 20.
No final, a secular democracia americana resistiu à infame tentativa de sublevação insuflada por Trump e da qual fizeram parte alguns senadores republicanos, como Ted Cruz, Josh Hawley e Ron Johnson. Mas o abalo seguramente foi sentido em democracias mundo afora.
O presidente Jair Bolsonaro, do tugúrio de onde expele fartas doses de mentiras e de veneno antiliberdades, voltou a prestar apoio a Trump e a dizer que a eleição americana foi “fraudada”, tal como a eleição brasileira em 2018, cantilena que repete sem apresentar provas. O presidente brasileiro afirmou que, “se tiver voto eletrônico no Brasil em 2022, vai ser a mesma coisa lá dos Estados Unidos” (sic). Se Bolsonaro não se conforma com o sistema eleitoral do País, que tente mudá-lo de acordo com as regras do jogo democrático. Se não conseguir e continuar inconformado, que renuncie à Presidência e deixe a ribalta, que não participe de um jogo de cujas regras discorda.
Como ele não tem estofo para isso, que as declarações temerárias sirvam de alerta para as autoridades brasileiras quanto ao risco de o presidente repetir no Brasil daqui a dois anos a intentona de seu ídolo americano.