Postado às 09h52 | 28 Mar 2020
A crise sanitária da pandemia da Covid-19 compromete planos. O necessário isolamento, o cancelamento de eventos presenciais, o fechamento ao público do comércio e de serviços requer ajustar o calendário, adiando compromissos e prolongando prazos. Logo, é razoável alguma mudança do calendário das eleições municipais deste ano.
Contudo, para manter a lisura das eleições e a capacidade dos eleitores votarem da maneira mais bem informada possível, decidindo da melhor forma, duas coisas devem ser evitadas.
Uma são alterações para ajudar casuisticamente atores políticos específicos. Mudanças de datas não podem ser pretexto para driblar problemas que, mantido o calendário original, seriam incontornáveis, pois isso prejudica a equidade da competição eleitoral. É o caso de prazos de filiação, de desincompatibilização, da vigência dos mandatos atuais ou do registro de novos partidos políticos.
A outra é promover alterações institucionais permanentes sem discutir ponderadamente seus efeitos, arriscando piorar o processo eleitoral. É o caso da ideia estapafúrdia de unificar todas as eleições, de presidente a vereador, num pleito só a cada quatro anos.
As justificativas para tal são frágeis: economia (“eleições são caras”) e paralisia administrativa (“tudo para em ano de eleição”). Em democracias mais antigas, a frequência de eleições é bem maior. Elas não têm esses problemas? Eleições não seriam muito mais baratas se unificadas, mas seus gastos seriam mais concentrados no tempo. Porém, a ínfima economia seria compensada por um brutal prejuízo democrático: a piora do debate político e das escolhas eleitorais. E por que isso?
Em casas de um cômodo só em SP, isolamento é impraticável; moradores de favelas apelam para receita caseira de álcool em gel, mas deixar de trabalhar não é opção. Na foto, a casa de Alex, na favela Monte Azul, onde moram 11 pessoas Léu Britto/DiCampana Foto Coletivo/
Hoje, em eleições municipais, o eleitorado faz duas escolhas (prefeito e vereador); nas eleições mais gerais, até seis (presidente, senadores, governador, deputados federal e estadual). Unificando, faria oito!
O debate iria do buraco da rua à política externa, passando pela gestão de recursos hídricos, segurança, saúde, educação (em todos seus níveis, cada um sob responsabilidade de um ente federativo) etc. A atenção a cada candidatura (sobretudo para o Legislativo) e a compreensão de cada tema seriam muito menores.
Se hoje eleitores já dão pouca atenção a certos temas, ou têm dificuldade para acompanhar ou compreender questões, a cacofonia de uma megaeleição pioraria tudo. As escolhas tenderiam a ser ainda mais afetivas ou irrefletidas, a qualidade de informação compreensível diminuiria.
Mais sentido há em aglutinar eleições municipais e estaduais: o menor número de cargos (apenas quatro) e a proximidade entre assuntos permitiria um debate melhor, até facilitando desfazer confusões de competência estadual e municipal.
Eleições federais separadas (presidente, deputado federal e senadores) teriam um número menor de cargos (até quatro), debatendo questões nacionais —aquelas sob responsabilidade do presidente da República e do Congresso Nacional.
A paralisia administrativa também é questionável. Por um lado, anos eleitorais são aqueles da entrega de políticas visíveis; por outro, não se resolve continuidade administrativa sacrificando o calendário eleitoral, mas aprimorando a gestão e as políticas.
Claro que a pandemia pode requerer alterações no calendário eleitoral deste ano. Contudo, não pode servir para ardilosamente prolongar mandatos e, pior, produzir uma degradação permanente da qualidade das eleições sob falsas justificativas.
Daniel Falcão
Nesta pandemia, inúmeras dúvidas surgiram no campo jurídico, em especial sobre a (in)constitucionalidade de medidas tomadas pela União, estados, Distrito Federal e municípios que limitam direitos fundamentais. No sistema político, uma dúvida cruel nos assombrará em breve: o que fazer diante do calendário eleitoral que culmina, em outubro, com a eleição municipal?
Esse pleito tem datas definidas pela Constituição, bem como o dia da posse de prefeitos e vereadores e a duração de seus respectivos mandatos (artigo 29, incisos I a III). Há, porém, diversos atos preparatórios às eleições que são fundamentais para que elas ocorram dentro da normalidade e da legitimidade, valores também previstos em nossa Carta.
Termina no dia 4 de abril o prazo legal para que futuros candidatos possam decidir por qual partido vão se lançar no pleito; em qual município serão alistados; e quais os partidos políticos que disputarão a eleição por terem conseguido atingir todos os requisitos previstos na legislação, por meio de seu registro no TSE. Nesse mesmo dia, vence o prazo para que diversos agentes públicos se desincompatibilizem de seus cargos para serem candidatos.
Em 6 de maio, temos outro prazo previsto em lei: os eleitores devem estar plenamente regularizados na Justiça Eleitoral para poder votar. A possibilidade de iniciar o financiamento de campanha por meio de vaquinhas virtuais começa no dia 15 de maio. No dia 20 de julho, iniciam-se as convenções partidárias e, em 15 de agosto, termina o período para o registro das candidaturas, iniciando-se, enfim, a campanha eleitoral.
Neste ano de 2020, contudo, surge a preocupação, diante da pandemia, com a aglomeração de pessoas nos cartórios eleitorais, nas reuniões políticas, na própria campanha e nas zonas de votação. A possibilidade do adiamento das eleições foi levada ao TSE há poucos dias. A proposta não foi aceita, sob o entendimento de que não cabe ao tribunal tratar desse assunto por uma mera resolução, mas sim ao Legislativo eventualmente deliberar sobre o assunto.
Em casas de um cômodo só em SP, isolamento é impraticável; moradores de favelas apelam para receita caseira de álcool em gel, mas deixar de trabalhar não é opção. Na foto, a casa de Alex, na favela Monte Azul, onde moram 11 pessoas Léu Britto/DiCampana Foto Coletivo/Diante disso, cogitam-se no Congresso propostas de adiamento das eleições. Depara-se, no entanto, com um obstáculo: a regra constitucional da anualidade eleitoral. Com o objetivo claro de evitar mudanças casuísticas no âmbito eleitoral, referida regra prevê que leis (incluídas emendas constitucionais) que alteram o processo eleitoral só serão aplicadas nas eleições seguintes se tiverem sido publicadas em até um ano antes da data do pleito.
Fala-se, então, na extensão dos atuais mandatos municipais para 2022, unificando-se todas as eleições brasileiras. Essa proposta já foi tratada no bojo da reforma política discutida em 2015. O Congresso rejeitou a ideia, por entender que não seria produtivo à democracia brasileira misturar temas federais, estaduais e municipais numa mesma campanha eleitoral. A extensão dos atuais mandatos por dois anos fere os princípios democráticos e republicanos previstos na Constituição, bem como a periodicidade do voto, notória cláusula pétrea.
O Congresso, portanto, deverá escolher entre cumprir estritamente as regras constitucionais e legais referentes ao calendário eleitoral ou obedecer à política epidemiológica voltada à proteção dos direitos à vida e à saúde. Essa difícil encruzilhada deve ser decidida o quanto antes, sob pena de discutirmos essa questão no ápice da pandemia e da possível crise política que nos avizinha.