Postado às 05h39 | 05 Dez 2020
Juan Arias - El País
Sergio Moro, ex-juiz da Lava Jato e ex-ministro do Governo de Jair Bolsonaro, é um personagem singular que, embora parco em suas palavras, sóbrio em seus gestos e duro em suas decisões, está fazendo barulho neste país e no exterior.
A última surpresa depois de ter deixado o cargo de ministro da Justiça foi seu contrato com a empresa de consultoria Alvarez & Marsal, que tem entre seus clientes duas grandes empresas brasileiras, Odebrecht e Queiroz Galvão. Como Moro ficou conhecido dentro e fora do Brasil por ter colocado grandes empresários brasileiros na cadeia, seu gesto de agora lembra a fábula da raposa no galinheiro. Por mais que tenha tentado explicar que agora deverá trabalhar para que as empresas não se corrompam, a verdade é que tudo leva a crer que ele passou para o outro lado, com seu contrato de consultoria para grandes empresas privadas.
Moro foi um simples juiz de primeira instância que ganhou fama mundial por suas sentenças que, pela primeira vez no Brasil, levaram à prisão grandes empresários e políticos de destaque, começando pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o mítico líder de esquerda.
Sua decisão inicial de integrar o Governo de extrema direita já foi uma estrondosa indicação de seus possíveis planos de entrar na política. E, mesmo quando saiu do Governo criticando o presidente Bolsonaro, poucos duvidaram que voltaria a entrar na política pela porta das urnas e de seus desejos nunca confessados de querer disputar a presidência da República em 2022. Agora, volta a surpreender com sua passagem para a iniciativa privada, retomando a advocacia. Será que, neste caso, terá que defender empresários corruptos? A Ordem dos Advogados do Brasil-São Paulo notificou o ex-magistrado para que não atue como advogado, a própria empresa diz que não presta serviços jurídicos. Ainda assim, uma sombra permanece.
O ex-juiz de primeira instância mais famoso dentro e fora do Brasil, tanto exaltado quanto odiado pela opinião pública, ainda não deu um motivo convincente para sua conversão à política. Alega apenas ter acreditado que, no importante cargo de ministro da Justiça, poderia dar um impulso ainda maior à sua cruzada contra a corrupção, embora a verdade seja que sua aliança com um personagem tão medíocre como Jair Bolsonaro nunca ficou clara. Sempre vestido de preto e de gravata escura, Moro parece uma esfinge difícil de decifrar, talvez depositário, ainda, de segredos que só ele conhece.
Parco em suas entrevistas, para desespero dos jornalistas que não conseguem decifrar se pensa ou não em entrar na política, ele volta agora a surpreender. Desgastado por uma série de críticas a certos comportamentos seus ao proferir sentenças e por chegar a encarcerar um mito como Lula, impedindo o ex-presidente de voltar a se candidatar, Moro, apesar dos rumores de que seu feitiço está se apagando, continua sendo um enigma. E se o contrato com a importante empresa de consultoria fosse outro golpe para ganhar a simpatia dessas empresas, que poderiam apoiá-lo em seu desejo de entrar na política pelo portão da presidência, enfrentando seu agora inimigo Bolsonaro?
A publicação, agora, de um livro sobre ele escrito por sua esposa, a advogada Rosangela Wolff Moro, Os Dias Mais Intensos − Uma História Pessoal de Sergio Moro (Editora Planeta) voltaram a colocar o personagem na vitrine. Na divulgação da obra, Moro escreveu: “Nada seria possível se essa verdadeira ‘Dama de Ferro’ não estivesse ao meu lado, especialmente nos momentos mais difíceis”.
Agora fica claro que, por trás de suas decisões que desconcertaram a opinião pública, existe essa Dama de Ferro que talvez não seja alheia às suas decisões sempre desconcertantes.
Para interpretar o mistério de Moro, seria preciso colocá-lo entre o “ser ou não ser” de Hamlet, o da angústia existencial, e o Cavaleiro da Triste Figura, apelido que Sancho Pança deu a Dom Quixote. Como na famosa Hamlet de Shakespeare, Moro parece se debater em suas decisões e planos futuros: “Ser ou não ser, eis a questão. O que é mais nobre para a alma: suportar as flechas e pedradas da áspera fortuna ou armar-se contra um mar de adversidades e dar-lhes fim?”.
Com Hamlet, o famoso dramaturgo gravou para a posteridade o termo hamletiano, o da dúvida permanente entre ser ou não ser. E parte dessa angústia deve ser a que carrega neste momento o hamletiano Moro, que ainda não acabou de decifrar seus verdadeiros planos para o futuro. E isso porque acredito que se precipitaram aqueles que pensam que sua ida para a iniciativa privada como advogado tenha resolvido finalmente o enigma de sua verdadeira vocação.
E juntamente com a dúvida eterna entre ser ou não ser, entre entrar ou não na política, neste momento não sabemos se para Moro não é mais fácil “suportar as flechas e pedradas que a cada dia se acumulam a seus pés ou armar-se contra um mar de adversidades e dar-lhes fim”.
O perigo que Moro corre com seu enigma por decifrar e sua surpresa de cada dia é o de se transformar no Cavaleiro da Triste Figura de Dom Quixote que investia contra os moinhos de vento como se fossem gigantes perigosos, revelando sua decadência como cavaleiro andante.
O Brasil vive um momento atormentado de sua política depois de ter descoberto a mediocridade do presidente Jair Bolsonaro, que se revela cada dia mais incapaz de governar um país de mais de 200 milhões de habitantes com influência inegável na política do continente.
Boa parte da classe política que não faz parte da extrema direita golpista começa a se unir para tentar destronar em 2022 o pior chefe de Estado da história política moderna do Brasil, que está levando à criação da imagem mais negativa do país desde os tempos da ditadura, inventando conflitos fictícios com as maiores potências do planeta, como Estados Unidos e China, sem os quais a política econômica deste país já teria afundado.
O Brasil não está na encruzilhada entre o “ser ou não ser” de Shakespeare. Sabe muito bem que país quer ser e sonha ser para seus filhos libertados do obscurantismo —para o qual está sendo arrastado por um Governo que não governa e por um presidente que não só é incapaz de entender os valores da democracia moderna, como também deseja a volta ao tenebroso autoritarismo ditatorial o que castra o melhor da alma deste país.
Neste ambiente de convulsão política, moral e econômica que já ultrapassou 14 milhões de desempregados e está trazendo de volta a fome ao país, a responsabilidade dos políticos que apostam na defesa das liberdades se torna cada dia mais indispensável.
E Moro?
Que Moro continue em seu ser ou não ser, sem dizer claramente se optará ou não pela política, é uma grande irresponsabilidade que chega a paralisar a criação de condições para o “todos contra Bolsonaro”. Com sua ambiguidade, Moro corre o risco de terminar como o Cavaleiro da Triste Figura de Dom Quixote.
Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse Grande Desconhecido’, ‘José Saramago: o Amor Possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.