Postado às 05h47 | 04 Mai 2020
Juan Arias - El País
Sergio Moro, o mítico juiz da Lava Jato, a operação policial contra a corrupção político-empresarial que levou os até então intocáveis à prisão pela primeira vez no Brasil, começando pelo carismático ex-presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, é hoje, já fora da magistratura, uma das figuras nacionais mais polêmicas, discutidas e analisadas pelos especialistas em política.
Sua personalidade hermética poderia ser analisada à luz do deus Jano da mitologia romana, aquele das duas caras ou duas portas, o deus das guerras, o que deu nome ao primeiro mês do nosso calendário: janeiro.
Moro acaba de voltar às primeiras páginas dos jornais por ter renunciado ao cargo de ministro da Justiça do Governo do ultraconservador Jair Bolsonaro. Saiu fazendo graves acusações ao presidente, de querer enquadrar ao seu serviço e de sua família a Polícia Federal, que, se comprovadas, poderiam fazê-lo perder o cargo.
Moro, que havia entrado no Governo ultraconservador como técnico, sem ser político de profissão e nunca ter se exposto ao juízo popular das urnas, hoje é visto como mais político do que muitos outros e aparece nas pesquisas para possíveis candidatos à presidência com um apoio muito superior ao de seu ex-chefe Bolsonaro.
Moro surpreendeu quando deixou seu posto de brilhante juiz criminal com fama internacional para ser ministro de Bolsonaro, cujos gostos golpistas já eram conhecidos. Agora acabou de abandonar o Governo batendo a porta, criando um caso político. Talvez seja por isso que ele é visto por muitos como um personagem difícil de catalogar e analisar.
Ao deixar o Ministério da Justiça, Moro levanta uma série de perguntas sem resposta sobre se foi vítima ou cúmplice do Governo de corte fascista de Bolsonaro. Cúmplice dos desmandos de um Governo que perdeu em pouco tempo o prestígio nacional e internacional por seus repetidos ataques às instituições democráticas às quais o presidente gostaria de colocar um ferrolho para governar com as mãos livres como mais um caudilho dos já conhecidos neste continente.
Aqueles que preferem ver na conduta do ex-juiz um cúmplice dos desmandos autoritários e racistas do presidente Bolsonaro lembram que é muito difícil que, antes de aceitar o cargo de ministro da Justiça, o juiz Moro ignorasse a biografia do capitão reformado Bolsonaro, conhecido durante seus quase 30 anos como obscuro deputado no Congresso por seus desvarios autoritários, sua nostalgia pela ditadura, seu fascínio pelos torturadores e seu desprezo pelas mulheres e por todos os diferentes sexuais. Era uma biografia pública.
Se antes de sua grave decisão de entrar em um Governo de corte fascista Moro quis queimar as naves de sua brilhante história como magistrado para entrar na aventura do poder político, é difícil ver sua saída hoje e seu enfrentamento com o presidente ao qual havia dado sua confiança como mais uma vítima de um Governo que maneja seus ministros como peões de um xadrez ao seu gosto e capricho. Moro não chegou ao Governo como um desprevenido.
Por isso há quem prefira vê-lo como cúmplice do presidente no ano e pouco em que permaneceu como poderoso ministro. Cúmplice no sentido de que nem antes de entrar no Governo nem dentro dele podia ignorar o caráter do presidente. E que aceitou implicitamente, sem nunca enfrentar, as investidas e os arroubos autoritários do presidente.
Já dentro do Governo, e quando parte daqueles que tinham votado no capitão aposentado começou a abandoná-lo diante de seus excessos, Moro não pareceu se sentir desconfortável naquele ambiente que se revelava cada vez mais sufocante para a democracia.
Além disso, chegou a aplaudir o presidente com palavras de elogio como estas, no dia 2 de dezembro de 2019: “O presidente Bolsonaro é uma pessoa muito íntegra. Todos que o conhecem testemunham (…). É claro que as pessoas sabem que casos de má conduta e corrupção podem surgir em uma máquina gigantesca da administração geral, mas não há paralelo com o que aconteceu no passado, em que havia esquemas sistemáticos de corrupção incorporados na administração pública”.
Eram tempos em que já começavam a aparecer as investigações de casos de corrupção dentro da própria família do presidente, que para Moro devem ter parecido pouco se comparados aos escândalos de corrupção durante os Governos de esquerda.
E se Moro fechou os olhos para a corrupção da família do presidente, não foi menos complacente com seus arroubos autoritários e com a política de punitivista de Bolsonaro, para quem “bandido bom é bandido morto”. O projeto do pacote anticrime proposto no ambicioso programa de Moro no Governo era tão duro que parecia querer emular seu chefe. Chegou a propor um indulto aos policiais que, ao matarem um inocente, o fizessem sob nervosismo ou medo. Chegou ao limite de propor uma lei para “deportar” estrangeiros que vivem no Brasil e fossem considerados perigosos.
Dias atrás, antes de sua renúncia como ministro, Moro chegou a ser corrigido em seu afã punitivsita pelo próprio presidente. Foi por causa das normativas para punir quem desobedecesse às regras da quarentena devido à pandemia. Moro, o mais duro, chegou a propor que os desobedientes fossem detidos pela polícia na rua e levados “algemados” para a prisão. “Critiquei Sergio Moro na época. Existe uma lei sobre abuso de autoridade que fala sobre o uso de algemas”, comentou Bolsonaro, que acrescentou: “Você precisa ter uma posição clara sobre a prisão, sobre algemar uma mulher na praia, o comerciante no Piauí, as pessoas humildes defendendo seu feijão com arroz”.
Moro tentou fechar um olho ou minimizar os escândalos de corrupção que estavam começando a salpicar os filhos do presidente, a esposa deste e as relações pouco republicanas do presidente com as milícias que assombram o Rio, que sempre foi a base eleitoral de toda a família Bolsonaro. E a pergunta que tantos faziam era por que, uma vez dentro do Governo, uma figura pública e com o seu prestígio, não saiu antes, ao descobrir, se é que já não sabia, a gravidade da força antidemocrática do novo presidente.
Talvez devido a essa ambiguidade de Moro, que deixou o Governo quando talvez fosse tarde demais, sua figura de mito poderia ser comparada ao deus Jano.
As mitologias gregas e romanas são, de fato, ricas em simbologias que sobreviveram até hoje. Um mito romano original que não tem antecedentes na Grécia é, efetivamente, o de Jano, o deus das duas caras.
A força do deus romano chegou a dar nome no Ocidente ao primeiro mês do ano, janeiro, que deriva de seu nome latino, Ianuario. Os meses do calendário começam, então, com o nome do deus romano que era visto como um mito da guerra. E em Roma ainda leva seu nome uma das colinas mais famosas, a de Janículo.
O mito do deus Jano, devido à sua peculiaridade de ambivalência, é usado para definir personalidades duplas e misteriosas. E duras, por ser o deus das guerras. Portanto, esse mito é usado para simbolizar qualquer tipo de ambiguidade política ou pessoal.
Até a psiquiatria usou o mito do deus romano para descrever a patologia da dupla personalidade e de tudo relacionado ao que aparece sem contornos de personalidade definidos.
Os aspirantes ao poder não deveriam esquecer que entre a iniquidade e o silêncio, entre a resistência e a cumplicidade, existe apenas o inferno. E querer pretender conseguir o poder amparado na astúcia ou oscilando em uma ambiguidade calculada pode levar ao pior dos fracassos.
Os malabaristas do poder que se movem nas sombras, que a Bíblia já admoestava, deveriam lembrar: “Assim, porque és morno, e não és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca.” (Apocalipse 3:16)
A ambiguidade nunca será mestra de sabedoria, muito menos de credibilidade política. Ao contrário, ecoa a covardia.