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"Se o país fosse empresa, executivos seriam demitidos"

Postado às 06h16 | 25 Mar 2021

Elian Guimarães

O neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, um dos mais respeitados no mundo atualmente e ex-integrante do Comitê do Nordeste de Combate à COVID-19, foi um dos primeiros a avisar, desde o início da pandemia, que poderia haver milhares e milhares de mortes pela doença no Brasil se não fossem adotadas rigorosas medidas preventivas pelo poder público. Agora, com mais de 12 milhões de casos confirmados e mais de 300 mil mortes, ele é categórico: “Vamos chegar a 500 mil óbitos”. E recomenda lockdown nacional, inclusive com barreiras nas estradas. Nesta entrevista exclusiva ao EM, ele diz também que se o Brasil “fosse uma empresa, todos os executivos seriam demitidos”.

O que é preciso ser feito de imediato para conter a COVID?Lockdown nacional. Constituir uma comissão nacional de manejo da pandemia, porque o governo federal renunciou às suas obrigações constitucionais de proteger o povo brasileiro. Ampliar dramaticamente, por volta de 10 vezes o número de vacinados por dia. Um bloqueio de fluxo de pessoas por todo o país, por malhas viárias e aeroviárias, o mais rápido possível. Só permitir fluxo essencial para transportes de elementos essenciais para as cidades.O que podemos vislumbrar baseado em dados da situação atual?Uma catástrofe. Não tenho mais adjetivos na língua portuguesa e estou começando a me expressar em inglês porque são palavras mais duras pra fora do Brasil. Uma hecatombe. É como se tivéssemos um reator nuclear fora de controle. Entrando em reação em cadeia e o Brasil sendo dizimado. Tivemos mais de mil óbitos em um único dia somente em São Paulo. O estado teve mais óbitos que todos os EUA, país de 338 milhões de pessoas. Isso porque os políticos brasileiros não conseguem agir racionalmente e fazer o que tem que ser feito. Vão empurrando com a barriga até chegar no limite. Veja Minas, um colapso do estado inteiro. 

BH fechou no primeiro momento da pandemia, mas não foi um procedimento adotado pelo estado naquele início. Um estado como Minas Gerais, com 853 municípios, qual seria a forma apropriada para conter a COVID?A decisão de fechar BH foi correta, mas não poderia deixar as demais cidades da Grande-BH abertas. O fluxo de pessoas entre os municípios limítrofes, como Contagem, Betim, Nova Lima entre outras, ia contra o benefício do lockdown de BH.O que faltou desde o início para um combate efetivo à pandemia?Faltou campanha de esclarecimento no Brasil inteiro e estados como Minas Gerais, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Paraná, Rio de Janeiro, Amazonas, os governadores basicamente ignoraram a gravidade da situação. Não criaram mensagem clara, verdadeira, objetiva, transparente de que a situação requeria um esforço jamais feito no Brasil. Um esforço comunitário. Uma demonstração de que se não houver união da sociedade para combater esse inimigo, a gente não sai disso. E vamos chegar a 500 mil óbitos. A cada dia as previsões ficam piores. Não só cientistas brasileiros estão dizendo isso.A Organização Mundial da Saúde soltou outro alerta, dizendo que há um manejo irresponsável. Que o Brasil precisa mudar de rumo imediatamente. Se o Brasil está fora de controle, essa pandemia não será detida. A comunidade internacional começa a reagir contra o Brasil. Aí os interesses econômicos, que estão por trás dessa tibieza pressionando para não fechar, serão dizimados pelo bloqueio de todos brasileiros no exterior. Pela falta de produtos para importar.

Faltam medicamentos no Brasil inteiro. São Paulo tem a maior infra-estrutura do hemisfério sul. A cidade de SP tem estoque de menos de uma semana de sedativos, anestésicos e relaxantes musculares. Como chegamos a isso?Se o Brasil fosse uma empresa, todos os executivos teriam sido demitidos. O que uma empresa faria se seu lucro tivesse saído do sexto maior do mundo para 12º em uma década? Não sobraria ninguém. O Brasil foi um livro-texto de incompetência e ineficiência. É muito duro dizer isso, porque sou brasileiro e tenho orgulho. O que vimos em estados como Minas Gerais desafia qualquer lógica. Poderíamos fazer mais no processo de produção, disponibilização de imunizantes e vacinação?O Brasil tem infraestrutura de recursos humanos e sistema de saúde pública para fazer a maior campanha de vacinação do mundo contra o coronavírus. Poderíamos ter feito algo que entraria para história. O que já fizemos em outras condições. 

Como será o tempo de imunização da pessoa vacinada? A velocidade com que foram desenvolvidas em vários países podem colocar em dúvida a eficácia?Depende de cada vacina. Tudo vem sendo estudado à medida que elas são aplicadas. Tudo foi feito em um ritmo impressionante. Em um ano. Isso atesta o grau de desenvolvimento da ciência mundial. O impacto da ciência no mundo atual é demonstração clara de que, pela primeira vez na história das pandemias, a ciência pôde fazer algo pela humanidade. Isso não foi possível m 1918 com a pandemia do influenza (gripe espanhola). A ironia é que agora, quando a ciência pode fazer alguma coisa, há alto grau de negacionismo científico, tanto na sociedade quanto entre governantes. Isso, em sociedades extremamente desenvolvidas, com reflexos no Brasil. É como se a espécie humana tivesse chegado num beco mental sem saída. Começa a conspirar, e é algo único no reino animal, até onde eu saiba, para sua própria extinção.

O que podemos esperar?Pelo andar da carruagem, tudo leva a crer que o Brasil caminha pra um colapso funerário. Tudo isso me deixa possesso porque falei isso em 4 de janeiro. Eu avisei, baseado em todas as estimativas de grupos independentes: se o Brasil não fechar, não fizer lockdown, impedir fluxo de pessoas e criar um comite nacional, vamos chegar onde chegamos.

Quais as sequelas da pandemia?São distúrbios sociais, econômicos e crise política. Começa a ter crise de abastecimento. O colapso funerário começa a provocar contaminação do solo, do lençol freático, dos alimentos. Surgem infecções secundárias. Tudo leva o povo ao desespero. O Brasil está sendo confrontado com a condição desumana que é ou morrer de fome ou pelo vírus. Nunca deveria ser posto como opção, para nenhum ser humano, ainda menos em um país que tem condições de ajudar sua população. Se tivéssemos criado, desde início, um programa de auxílio financeiro para que as pessoas ficassem em casa, não teríamos perdido 300 mil vidas. 

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