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Saída antecipada de Celso de Mello, “ponto de equilíbrio” da Corte, tensiona sua sucessão

Postado às 05h04 | 27 Set 2020

El País

Quem vê o ministro Celso de Mello hoje, dando conselhos aos seus colegas mais jovens ou recados às altas autoridades da República, imagina que o faz por ser o decano ― o integrante com maior idade ― do Supremo Tribunal Federal. A voz da experiência. Mas a função de “conselheiro” o acompanha por toda a sua carreira. Na década de 1970, recém empossado no cargo de promotor de Justiça no interior de São Paulo, era comum ajudar a sua irmã, Maria Aparecida de Almeida Mello, onze anos mais velha, e os colegas dela na procuradoria do Estado. O buscavam para uma espécie de assessoria voluntária por telefone. Ele tinha 25 anos de idade, recém-formado em direito pela Universidade de São Paulo, e já era reconhecido na época como dono de um amplo saber jurídico.

Agora, três semanas antes de completar os 75 anos – idade limite para continuar como servidor público – ele se aposentará da Corte, no dia 13 de outubro. Por vontade própria, depois de tirar duas licenças ao longo de 2020 para cuidar da saúde. Sua saída deixará um vácuo difícil de ser ocupado e coincide com outra sucessão decisiva na Suprema Corte dos Estados Unidos, após a morte de Ruth Ginsburg. Nos dois países teme-se um possível ponto de inflexão com essas sucessões, o que pode determinar o tom de decisões futuras.

 

O substituto de Mello será indicado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e, segundo palavras do próprio mandatário, terá como uma de suas principais características, ser “terrivelmente evangélico”. Por ordem de preferência de Bolsonaro, entre os mais cotados para a indicação estão os ministros da Secretaria-Geral, Jorge Oliveira; da Justiça, André Mendonça; e do Superior Tribunal de Justiça, João Otávio de Noronha e Humberto Martins. Além do procurador-geral da República, Augusto Aras, e do juiz federal Marcelo Bretas.

Antes de deixar o posto, Mello deverá participar do julgamento virtual de um trecho do inquérito que investiga se Bolsonaro tentou interferir politicamente na Polícia Federal para proteger sua família de investigações. A decisão será se o presidente tem de depor presencialmente ou se pode fazê-lo de maneira escrita. O caso, que é relatado pelo decano, não será concluído até a sua aposentadoria e, conforme fontes do Judiciário, estaria aí a chave para ele antecipar em 20 dias a sua saída do cargo. Geralmente, o substituto de quem deixa a Corte herda as relatorias. Ou seja, um indicado por Bolsonaro seria o responsável por conduzir a investigação contra o presidente.

A tese desses observadores internos do Judiciário é de que os ministros da Corte estariam contando com a dificuldade de o presidente encontrar um nome que consiga ser aprovado rapidamente no Senado para repassar a relatoria a um dos outros nove ministros – normalmente o presidente da Corte, Luiz Fux, não recebe novos processos fora do plantão judicial. Desta maneira, haveria um rearranjo interno para assumir este caso, evitando a interferência presidencial no tema.

Além do inquérito contra Bolsonaro, ele deixará de lado ao menos mais dois casos com repercussão na seara política, que trata da suspeição do ex-juiz Sergio Moro em condenar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na operação Lava Jato e o que avalia se o senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente e investigado por desviar recursos de funcionários, deve ter foro privilegiado.

Equilíbrio e sabedoria

Depois de 31 anos de atuação, sendo os últimos 13 como o mais antigo ministro da Corte, é considerado como a “enciclopédia” do Supremo, um historiador do Judiciário e do direito constitucional. Seus votos costumam ter longas citações às constituições antigas, algumas que veem desde o início da República, e são cheios de contextualizações políticas e sociais. É definido por juristas como uma pessoa preocupada com a dignidade humana, defensora da igualdade de gêneros e das liberdades individuais, além de ser um atroz combatente da corrupção, sempre respaldando o direito ao contraditório.

Suas características pessoais mais ressaltadas são a modéstia, a discrição – raramente é visto em eventos sociais –, a sua paixão por doces, café, fast food e pelo São Paulo Futebol Clube, além da sua intensa dedicação ao trabalho: fica ao menos 14 horas por dia em seu gabinete. “Sinto que é preciso explorar todo o tempo disponível”, disse à TV Justiça, em 2009, em uma das poucas entrevistas concedidas ao longo de sua carreira de ministro. Prefere falar pelos autos. Em um dos casos, por exemplo, deu recado direto a Bolsonaro, que tentava apresentar uma medida provisória que já havia sido rejeitada pelo Congresso. “É preocupante essa compreensão pois torna evidente que parece ainda haver, na intimidade do poder hoje, um resíduo de indisfarçável autoritarismo, despojado sob tal aspecto, quando transgride a autoridade da Constituição, de qualquer coeficiente de legitimidade ético-jurídica”.

Entre quem frequenta os corredores das cortes superiores de Brasília é comum ouvir a seguinte frase dos que tiveram seus interesses contestados por Mello: “mesmo quando ele decide contrariamente não há do que se queixar”. Ainda que não seja professor, de fato, ele faz questão de dar lições em suas extensas e bem embasadas decisões. “Ele não resiste à tentação a ter esse viés pedagógico”, avaliou o ex-procurador-geral da República Roberto Gurgel.

Para alguns, ele é considerado o ponto de equilíbrio do STF. “Quem estuda seus votos, não consegue identificar se ele é mais progressista ou mais conservador. Ele é um juiz como todos deveriam ser”, disse o advogado Luís Henrique Machado, que defende dezenas de acusados de corrupção que já foram condenados e absolvidos pelas mãos de Mello. Em uma entrevista dada em 2009, o ex-presidente José Sarney (MDB), que o indiciou para o Supremo, definiu Mello como “um ícone daquilo que deve ser um magistrado da Suprema Corte”.

Organizador do livro “Reforma política Brasil república - em homenagem ao ministro Celso de Mello”, o advogado Erick Pereira sintetizou assim a carreira do magistrado: “Em um momento que a gente vive uma divisão dogmática entre o punitivismo e o garantismo, ele é a Constituição”. Nos últimos anos, o Judiciário brasileiro tem se dividido em uma grupos considerados apoiadores das operações contra corrupção, como a Lava Jato, e os que costumam decidir a favor dos réus destes casos. Na maioria desses julgamentos é possível ter uma sinalização de como cada ministro irá se comportar. A dúvida costuma residir no posicionamento de Mello.

Entrelinhas

Natural de Tatuí, no interior de São Paulo, Mello chegou ao STF em 1989, quando a Carta Magna tinha só um ano de idade. Por ter começado sua vida de juiz com uma Constituição recém-criada, aprofundou-se nela. “Ele possui a capacidade de entender o que está escrito na entrelinha da vontade do legislador na formulação dessa Constituição”, diz Pereira.

Antes de ser ministro, Mello era promotor em São Paulo. Por criticar atos da ditadura militar e abrir sindicâncias contra policiais por prisões arbitrárias, demorou mais do que o costume para ser promovido. Já na década de 1980, quando conseguiu chegar ao cargo de procurador de Justiça, em três ocasiões frequentou a lista tríplice do Ministério Público para se tornar desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, mas foi preterido por outros colegas. Foi indicado por Sarney depois de trabalhar na consultoria-geral da República entre 1986 e 1989.

Agora, vivendo um período em que o Brasil é governado por admiradores da ditadura militar, ele deixará a Corte na esperança de que seus ensinamentos sigam ensinando os valores da liberdade. “Suas decisões permanecerão como um grande legado de afirmação dos valores democráticos por muitas gerações”, avaliou o advogado Erick Pereira.

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