Postado às 06h43 | 30 Jun 2021
El País
O deputado Ricardo Barros (PP-PR) ainda compunha as fileiras do extinto PFL quando deu as costas para seus colegas e foi o único representante do partido a votar contra a emenda que acabou por autorizar a reeleição durante o primeiro Governo de Fernando Henrique Cardoso (1994-1998). Até hoje não esconde o feito com estratégico orgulho, como fez recentemente em uma postagem em sua conta no Twitter. Alçado no ano passado por Jair Bolsonaro à condição de líder do atual Governo, Barros, que já havia sido líder da Gestão de FHC e vice-líder nas administrações de Lula e Dilma, além de ministro da Saúde no polêmico mandato de Michel Temer, abraçou no ano passado a empreitada política camuflado aos interesses do novo chefe.
Tão logo tomou corpo, um ano atrás, o debate acerca da tentativa de reeleição de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre para, respectivamente, as presidências da Câmara e do Senado, por exemplo, Barros ainda se mostrava contrário ao instituto da reeleição, seja qual fosse a instância. Reforçando a artilharia que a família Bolsonaro despejava principalmente contra Rodrigo Maia, o deputado do Progressista fazia ali a primeira lição de casa, e atuou nos bastidores numa ação de desgaste do colega que tentava ser reconduzido à presidência da Casa. Era irredutível, e a reeleição, dizia ele, não passaria de jeito algum.
Bastou assumir a liderança do Governo na Câmara em outubro de 2020 para o deputado abrir os braços e dar outra configuração à própria tese quando perguntado sobre o projeto de Bolsonaro em se manter mais quatro anos no poder: “É um caminho natural o apoio do Centrão (para a reeleição)”, disse, confortavelmente, sobre o provável apoio dos partidos que dão sustentação ao Governo no Congresso.
Está nesse abraço com o Centrão, visando 2022, segundo análises elaboradas por integrantes do Governo e parlamentares, principalmente de oposição, o motivo pelo qual o presidente parece ter ignorado a denúncia do servidor público Luis Ricardo Miranda e seu irmão, o deputado Luis Miranda, que envolveram o nome de Barros em um esquema supostamente fraudulento para compra da vacina indiana Covaxin em plena pandemia que matou mais de 510.000 pessoas no país. Nesta terça, as acusações ganharam nova temperatura quando a revista Crusoé traz um relato no qual o próprio Barros aparece oferecendo propina ao deputado Miranda em troca de que ele e o irmão parassem de atrapalhar o acerto com a Covaxin. Já Folha de S. Paulo traz a denúncia de um representante da empresa Davati Medical que disse ter ouvido de um indicado de Barros no Ministério da Saúde que só aceitaria fechar negócio por um imunizante se topasse pagar uma propina de um dólar por dose.
Pelos corredores do Planalto do Palácio a voz corrente é a de que Bolsonaro, em colóquios regados a expressões de apelo popular, estaria numa “sinuca de bico”. O que explicaria o cavalo de pau que o presidente deu em seu discurso quando a crise da vez no Governo esbarra na sua principal bandeira eleitoral. Se antes dizia com todas as letras não haver corrupção na sua gestão, o mandatário agora usa de um artifício comum no ambiente político: “Não tenho como saber o que acontece em todos os ministérios”. Rendeu-se ao peso do abacaxi e nesta terça viu o Ministério da Saúde cancelar o contrato com a fabricante indiana do imunizante, uma tentativa de redução de danos diante do escândalo.
Numa análise fria dos acontecimentos, de acordo com interlocutores, o presidente avaliava de forma meticulosa como agir no caso da Covaxin. Sabe que Barros, seu amigo de partido quando os dois integravam o PP, tem nas mãos uma fatura político-eleitoral importante que o blinda de uma fritura. Para o presidente, pagá-la ou não é o que vai ajudar a desenhar seu futuro próximo. A amigos próximos, Barros estaria aguardando calmamente como o intempestivo presidente vai reagir ao longo dessa semana, considerada quente com o caminhar da CPI da Pandemia. Enquanto isso, teses conspiracionistas colocam em lados opostos Barros e o atual presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), já apontado como quem estaria por trás da denúncia feita por Miranda contra o líder do Governo bolsonarista na Câmara.
A dúvida de como Barros pode agir diante de uma eventual degola explicaria, segundo relatos, o fato de Bolsonaro ter reagido apenas com “isso é rolo do Barros” quando alertado sobre possível fraude em um contrato milionário para compra da Covaxin, vacina intermediada pela Precisa Medicamentos. A Precisa pertence a Francisco Maximiano, nome próximo ao deputado desde que dava seus primeiro passos na política em Maringá, cidade onde seu clã domina o espaço político. O presidente não acionou os órgãos que, neste caso, deveriam se debruçar sobre a denúncia. Na contramão, procurou desqualificar quem tinha informações sobre um eventual esquema de corrupção no seu governo. Homem forte do Governo, Barros parece blindado pela razão óbvia de como funciona a dinâmica da política nacional.
“O presidente tem um grande problema pela frente. Se tirar o Barros da liderança, ele sabe que pode perder o apoio dos partidos com os quais Barros faz intermediação. Além disso, ficaria frágil o discurso que ainda cola em seus eleitores, de que não há nem nunca houve corrupção no Governo”, diz um governista com trânsito no Ministério das Relações Institucionais. Mesmo três dias depois de Barros pôr os pés em areia movediça, Bolsonaro não veio ainda a público negar que tenha citado o seu líder na Câmara aos irmãos Miranda. Coube ao próprio ir às redes sociais para negar envolvimento com possíveis fraudes, e se colocar à disposição das autoridades para dar sua versão, o que ainda não aconteceu.
Na noite desta segunda-feira, Barros respondeu ao EL PAÍS pelo WhatsApp. Numa troca de mensagens sem réplica, não descartou a a possibilidade de Bolsonaro tê-lo citado na conversa com os irmãos Miranda. Em sua defesa, acredita apenas que não se trataria de uma menção relacionada à Covaxin. Preferiu deixar no ar que, se Bolsonaro o enxerga como um político com seus “rolos”, é coisa do passado. “Pelas informações divulgadas até o momento a respeito do suposto diálogo, o caso em questão seria sobre a empresa Global e a compra de medicamentos não entregues”, disse.
O Ministério Público Federal acusa o deputado de ter beneficiado a Global Gestão em Saúde quando ele era ministro no Governo Temer. A empresa ofereceu o menor preço mas não entregou os medicamentos que seriam destinados a pacientes com doenças raras. O Governo desembolsou 19,9 milhões de reais e até hoje os remédios não chegaram às prateleiras. “Na minha gestão promovi uma economia superior a 5 bilhões de reais ao sistema de saúde (...) São processos que afrontam grandes interesses”, disse o deputado a este jornal. O caso que ganhou o noticiário entre 2016 e 2018 tem forte contorno na atual crise uma vez que Maximiano é sócio tanto da Global como da Precisa, empresa alvo da CPI da Pandemia onde os irmãos Miranda apontaram Barros como a autoridade que estaria fazendo pressão para o Governo dar celeridade ao contrato mesmo, segundo eles, diante de irregularidades.
Barros se defende: “Embora a Global seja sócia da Precisa Medicamentos, esse processo em nada se relaciona com a aquisição de vacinas da Covaxin”, diz ele. “Estou à disposição para prestar esclarecimentos, inclusive na CPI”. O deputado garantiu também não ter relações com Maximiano: “Não sou próximo do senhor Francisco Maximiano e não atuei em favor da Precisa”, completou.
A comissão está ávida por mais informações. Nesta quinta-feira, pretende ouvir Maximiano para que ele dê explicações sobre o contrato de compra de 20 milhões de doses do imunizante produzido pelo laboratório indiano Bharat Biotech, agora suspenso. Ele teria chegado nesta segunda-feira do exterior, informação desencontrada com a primeira notícia pós-escândalo, de que ele havia desembarcado no Brasil no último dia 15, vindo da Índia. O acordo da Precisa chegou a ser fechado com o Ministério da Saúde, mesmo com o valor do imunizante oferecido —15 dólares, valor superior ao que estava sendo oferecido pelos imunizantes da Pfizer e da Coronavac — e também na celeridade da negociação, tida como “atípica” pelo servidor. Além disso, o material que chegaria no Brasil estaria perto do prazo de validade.
“A nossa preocupação é que esse tipo de denúncia não trave uma área da saúde muito importante, que é o da logística, o que prejudicaria processos importantes que estão em andamento e não têm relação alguma com o que está acontecendo”, diz Nelson Mussolini, presidente do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos do Estado de São Paulo (Sindusfarma), que hoje representa 95% do mercado. A Precisa e a Global não fazem parte do quadro de sócios do sindicato.
Chegada à conclusão de que haveria um esquema contra os cofres públicos e ainda colocaria no mercado uma vacina não aprovada, o Governo terá que reverter sua posição de blindagem de Barros. Um dos pontos-chave a ser explorado na investigação tem relação direta com a medida provisória editada pelo Governo Bolsonaro em 6 de janeiro, a qual permite a compra emergencial de vacinas contra a covid-19, mas sem possibilidade de adquirir as vacinas da Pfizer e da Janssen. Toda a articulação para a aprovação da MP no Congresso foi capitaneada por Ricardo Barros, segundo seus próprios pares na Casa.
Ao EL PAÍS, o deputado e ex-ministro da Saúde, Alexandre Padilha, é enfático. “A MP assinada por Bolsonaro em 6 de janeiro foi feita para permitir o esquema na compra de vacina, e não à toa, em 7 e 8 de janeiro, o embaixador do Brasil na Índia apresenta uma empresa [a Precisa] para ser intermediária do laboratório indiano nesse esquema. E não à toa, essa MP faz uma regra que permite o pagamento antecipado dos recursos, inclusive estabelecendo que a empresa não possa ser punida mesmo não entregando o volume integral do material”.
Uma fonte da área de saúde, que tem negócios com o Governo federal há mais de dez anos e que prefere o anonimato sob argumento de que exposição neste momento pode prejudicar mesmo quem atua de forma lícita, diz sempre ter estranhado a evolução da Precisa nos contratos com o atual Governo. De 2019 para cá, a empresa fechou ou intermediou acordos com o Ministério da Saúde que somam 1,6 bilhão de reais. Antes de Bolsonaro, a Precisa assinou apenas um contrato na esfera federal, de 27,4 milhões de reais. Em carta aos senadores da CPI, o empresário já avisou que não pretende fazer uma caça às bruxas em seu depoimento: “É inequívoco que o investigado Francisco Maximiano não tem qualquer fato a depor perante essa CPI contra o atual Governo”.
A denúncia dos irmãos Miranda contra Barros deve remeter o deputado a uma nova peleja para tentar enterrar denúncias que envolvam esquemas de corrupção. E vai novamente colocar à prova seu jogo de cintura para evitar manchas na biografia dos Governos para quem atua. Agora, mais que nunca, terá que livrar a própria pele. Não é de hoje que o deputado se mostra experiente para tratar do tema. Em 2001, Barros conseguiu cooptar 20 deputados para que eles retirassem suas assinaturas do requerimento de criação da chamada CPI da Corrupção. Com isso, livrou o governo tucano de um escrutínio que tinha tudo para jogar ainda mais para baixo a popularidade já em queda de FHC naquele fim de mandato. “O Ricardo [Barros] é daqueles políticos que sabem jogar o jogo do Congresso, seja para o lado que for, e depois cobra a fatura”, diz um tucano que fez parte da bancada de apoio dos dois Governos de Fernando Henrique, entre 1995 e 2002.
A atuação de Ricardo Barros na gestão de FHC foi o que alguns consideram como o passaporte para que ele se transformasse num vigoroso político de bastidores, daqueles que mostram resultados em sua base eleitoral dada sua fidelidade com o governo vigente. Foi ganhando espaço e prestígio entre seus pares, até que pulou do ninho tucano para a gestão petista mesmo depois dos primeiros anos de oposição ao Governo Lula. Barros e o então deputado Luiz Carlos Heinze eram os únicos entre os 42 deputados eleitos do PP em 2006 que não concordavam que o partido fizesse parte da coalizão ao Governo Lula. Já no segundo mandato petista, disse que não via constrangimento em assumir a vice-liderança de Lula. “No primeiro, fiz uma oposição ao Governo do PT. Agora é diferente, é um Governo de coalizão”, justificou na ocasião.