Postado às 05h50 | 06 Ago 2020
Guga Chacra
“Guga, Beirute acabou. Não há mais Beirute. É apocalíptico, Guga. Parece aqueles filmes de Hollywood onde toda a cidade foi destruída. Não sobrou nada. Nada. Não tem casa em Beirute que não tenha sido danificada. É algo nunca visto antes.”
A Karma, minha melhor amiga libanesa, com voz embargada, me enviou esta mensagem na madrugada de ontem.
A Beirute da Karma, que é a minha Beirute, acabou. A Beirute trágica derrotou a Beirute mágica. Sei disso porque a Karma era uma apaixonada por Beirute, sua cidade natal. Cresceu durante a guerra civil, quando diferentes milícias cristãs lutavam entre si e também contra grupos palestinos, inimigos sunitas, xiitas e marxistas. De origem cristã armênia, é casada com o Hani, um muçulmano sunita. Fluente em francês, árabe, inglês e armênio, foi a quarta geração da sua família a se formar na Universidade Americana de Beirute, a mais tradicional do Líbano. Sempre mostrou otimismo, mesmo nos piores momentos de tragédia.
Nasci em São Paulo, que sempre será a minha cidade. Moro em Nova York, que é a cidade onde escolhi viver. Mas Beirute é a cidade que eu amo, desde a minha primeira visita nos anos 1990 com meus pais e irmãos, para onde vou quase todos os anos e onde fixei minha base entre 2008 e 2009 quando era correspondente no Oriente Médio. Vi essa cidade, na terra dos meus avós, ainda destruída pela guerra civil (1975-90), e a vi reconstruída. Vi bombardeada em 2006, e a vi reerguida. Vi a Beirute trágica e vi a Beirute mágica.
Beirute resume o mundo. Resume ao ser a verdadeira ponte entre Ocidente e Oriente. Não é clichê. É a realidade dessa metrópole às margens do Mediterrâneo Oriental, que abre as portas para o mundo árabe de um lado e serve como porto de partida para a Europa em outro. Essa cidade que sofreu influência francesa e também árabe. Essa cidade que existe desde os fenícios, passando por impérios como o Bizantino e o Otomano.
A Beirute mágica é das pedras do Raouche no Mediterrâneo; é o das pessoas fumando narguilé e pescando no calçadão à beira-mar do Corniche. É a Beirute da colina verdejante da magnífica Universidade Americana de Beirute; é a dos restaurantes da marina de Zeituna Bay; é da piscina do Hotel Phoenicia; é dos minaretes e cruzes se misturando no centro reconstruído; é as ruas charmosas e igrejas de diferentes denominações cristãs de Ashrafyeh; é a dos bares lotados de Mar Mikhail e Gemeyzah; é dos cafés de Hamra; é das mulheres de véu amigas das meninas de biquíni; da voz da Fairuz na música Li Beirut.
E há a Beirute trágica com a sua parte pobre, onde vivem os refugiados sírios e palestinos em condições de miséria. São as cicatrizes de conflitos e dos atentados, como as ruínas do Hotel St. George, destruído na guerra civil e depois no atentado contra Hariri. A Beirute trágica é também do colapso econômico, da incompetência política, do lixo não recolhido, da falta de eletricidade, dos bombardeios. E agora, a Beirute trágica da explosão no porto.
Minha primeira memória de Beirute foi aos 6 anos, vendo o Jornal Nacional, possivelmente após o atentado que matou o presidente Bashir Gemayel. Meu pai, filho de libaneses, disse que “Beirute acabou”. Era a Beirute trágica. Mas voltou a ser mágica. Minha filha de 4 anos está impactada com a “bomba no Líbano”, da Beirute trágica. Mas um dia a levarei para conhecer a Beirute mágica, da Karma. Que está destruída. Mas será reerguida como tantas outras vezes.