Postado às 10h29 | 06 Fev 2022
Mario Vargas Llosa, O Estado de S.Paulo
Vladimir Putin, o homem que está a ponto de afundar a Europa em uma guerra de imprevisíveis resultados, não é um intelectual nem um homem afeito a livros: a educação que recebeu é a de um funcionário da polícia política da URSS, a KGB. Esteve algum tempo na Alemanha Oriental, um país que, dizia-se, era o mais próspero entre os que conformavam a URSS. Uma fantasia, pois quando saiu da esfera soviética, descobriu-se que o país era bastante atrasado. Passaram-se vários anos desde que se reintegrou à Alemanha e ainda é pobre em relação à Alemanha Ocidental.
Boris Yeltsin, um democrata bêbado e desajeitado, cometeu o erro de promover Putin e levá-lo ao poder, algo que lhe deu muita popularidade quando a Rússia parecia a ponto de romper-se na desordem descomunal de que padecia, pois ele colocou ordem naquele caos e os russos (não todos) acreditaram que, com ele no poder, adviria um tempo de paz e prosperidade para o país.
A Rússia deixou de ser comunista desde então, mas não é democrática nem liberal, e pratica um capitalismo de compadres, onde, desde que permaneça calado e siga passo a passo as disposições do poder, alguém pode se fazer rico e até bilionário. Mas não tente visitar o bairro de Moscou onde vivem os poderosos aliados de Putin, pois uma barreira policial o impede, como tive oportunidade de comprovar há três anos, quando estive por lá.
Os russos que admiram Putin acreditam em tudo o que ele diz - já não são muito numerosos, como mostra o fenômeno Alexei Navalni, a quem o poder tentou assassinar e o mantém agora em uma prisão - e muitos deles compartilham de sua crença de que a Ucrânia é parte da Rússia dos czares, pois os mais antigos nasceram e estão enterrados lá, como se as orografias nacionais se mantivessem intactas ao correr dos séculos, sobretudo no continente europeu, e não tivessem mudado centenas de vezes de conformação e natureza ao longo de sua história.
Putin já recuperou para a Rússia a Península da Crimeia, uma parte da Ucrânia. A operação militar deixou muitos mortos, já esquecidos. Mas a solicitação de ingresso à Otan do novo governo ucraniano incitou a indignação dos dirigentes russos que, prontamente, colocaram 100 mil militares na fronteira oriental deste país. E, em cartas aos EUA e à Otan - a defesa do Ocidente -, pediram garantias, ou seja, uma proibição expressa de que os países fronteiriços à Rússia se incorporem à aliança atlântica, algo que, obviamente, é incompatível com a liberdade de cada país de ser membro - sobretudo tratando de defender sua independência - de qualquer organização que exista e esteja garantida pelos tratados internacionais.
Estourará uma guerra que coloque em perigo a paz do mundo e poderia se degenerar em uma confrontação atômica, que, após a pandemia do coronavírus, deixaria o restante do planeta em estado de decadência ou acabaria com ele? Eu, pessoalmente, não creio, ainda que, com certeza, bato na madeira, pois tudo poderia ocorrer.
Imagino que Putin se acostumou a colocar o mundo de joelhos com seus desplantes e ameaças e, pela primeira vez, adverte o restante da comunidade, ou seja o Ocidente, que reagirá às suas provocações com advertências muito concretas: de castigá-lo com a interrupção do fornecimento de gás para a Europa.
Esta ameaça, aliás, não parece deixar tão contentes os países que se veriam mais afetados, como Alemanha, onde já se registraram alguns respingos adversos dos novos dirigentes, e até a França, onde o presidente Emmanuel Macron trata de iniciar um diálogo com o russo, algo que não é tão fácil nem surte resultados tão imediatos. E o dirigente húngaro, Viktor Orban, se apressou em ir a Moscou proclamar sua solidariedade com os russos, durante uma conversa com Putin, que o declarou “o melhor amigo que temos no mundo ocidental”.
Em todo caso, é óbvio que as ameaças dos EUA e dos países da Otan não recebem respaldo unânime nem igualmente enérgico de todos que seriam vítimas de uma agressão russa e de Putin, em seu afã de reconstruir o que foi o império soviético nos tempos do stalinismo. Essa possível censura dos países do Ocidente, que elevaria o custo do fornecimento de energia para vários deles - como Espanha, por exemplo -, é uma fraqueza que poderia animar o dirigente russo a cumprir sua ameaça, apesar das enérgicas declarações dos EUA e da Otan de que, se a Rússia romper com a paz e invadir a Ucrânia, receberia um castigo sem precedentes que poderia quebrar sua economia e seria afrontada por uma ofensiva militar.
O que ocorrerá, finalmente? Minha impressão é que, pressionado a agir, Putin calculará que os riscos de uma ofensiva geral do Ocidente contra a Rússia são elevados demais e, com efeito, isso poderia significar o fim da popularidade com que, de maneira relativa, ele tem contado até agora na Rússia, e a oposição, que cresceu nesses últimos anos, poderia desalojá-lo do poder - e talvez isso o obrigue a se conter. Tudo isso é mera especulação.
Também poderia suceder que, advertido para as potenciais diferenças que existem no Ocidente entre os EUA e os países vítimas de um corte no fornecimento de energia, Putin sinta-se com forças para invadir a Ucrânia, haja o que houver. Parece-me que esta opção é mais difícil, mas não impossível. Os “homens fortes” no poder, como ele, podem às vezes fazer apostas arriscadas.
Há que se fazer todo o possível - e o impossível - para que esta circunstância não escancare que ninguém sabe o poderia significar uma guerra na atualidade, com os gigantescos esconderijos de bombas e artilharia atômica que possuem os países que se enfrentariam. Fundamentalmente dois, Rússia e EUA. O restante desempenharia simplesmente o papel de recrutas e vítimas, já que nenhum deles - e as bravatas de Boris Johnson menos que tudo - está em condições de resistir a uma agressão atômica.
Estou bastante seguro de que nada desse final pessimista se concretizará. E o antigo membro da KGB, onde ensinaram a Putin o judô que lhe permite, para publicidade, derrubar facilmente seus adversários diante das câmeras, conterá neste momento sua ânsia de ressuscitar o império soviético e o sistema ocidental respirará mais tranquilo após a bagunça destes dias.
Porque uma terceira guerra mundial não seria limitada nem prescindiria do uso dessas armas, que poderiam fazer desaparecer um milhão de pessoas (ou muito mais) com um só disparo. No passado, esse entretenimento dos poderosos era possível porque, mesmo com os erros, a matança era controlável. Agora já não é assim. Um descuido, por mínimo que seja, pode provocar o fim do mundo.
Isso significa que o restante do planeta deve se curvar, retroceder e acatar sem resistir os caprichos do “patriota” que governa Moscou? Tampouco creio nisso. Parece-me que chega-se a um limite, e o Ocidente não pode fazer mais concessões ao dirigente russo, pois isso seria renunciar às coisas mais admiráveis conquistadas, entre elas a liberdade e a democracia, que dignificaram a vida de milhões de seres humanos. Pensamos que, em meio ao caos que viveu ao fim do império, a Rússia também as obteria. Era outra fantasia.