Postado às 04h30 | 18 Ago 2020
Carlos Ayres Britto
É de percepção geral o fenômeno das fake news. Fake news como notícias falsas, literalmente. Ainda que tal desencontro com a verdade não seja total. Ou aconteça por modo tão completamente voluntário quanto apenas em parte, ou até mesmo sem nenhum ingrediente subjetivo de parceria com a inverdade. De toda maneira, notícias falsas que se espalham instantaneamente e em escala planetária, porquanto formatadas sob essa revolucionária forma de mensageria em rede que toma o nome técnico de “comunicação de dados”.
Compreensível, pois, que se pressione o Estado para editar leis de enfrentamento eficaz desse recorrente fenômeno. É o pano de fundo do Projeto de Lei número 2.630, em tramitação pela Câmara dos Deputados e sob a ementa de “Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet”. A exigir a lembrança de que boa parte dos temas ali tratados tem o seu regime jurídico diretamente estabelecido pela Constituição da República. Logo, um regime que não pode deixar de se pôr como obrigatório parâmetro para toda e qualquer lei de escalão infraconstitucional.
Essa advertência começa pela necessidade de se entender o que não sejam fake news. Por ilustração, elas não correspondem às categorias constitucionais da liberdade de “manifestação do pensamento” e da “expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação”. Tampouco mantêm identidade com o direito de “acesso à informação”. Antes frustram o direito de todos ao mais livre acesso a um tipo veraz de informação, pois somente ele é que se põe como direito fundamental (por isso que bem de personalidade). E quanto à tarefa de dizer em que as fake news consistem, é preciso ver se elas já se encaixam nesse ou naquele molde legal de infração penal. Ou se é possível tomá-las como hipótese de incidência de um novo ilícito. Mais ainda, importa saber se a perpetração de fake news expõe o(s) seu(s) agente(s) à vedação de protagonizar futuras e distintas relações de internet. O que, data venia de entendimento contrário, me parece juridicamente descabido.
São aspectos que, junto a muitos outros de idêntica relevância – a partir do caráter jurídico totalmente privado das relações de internet -, não têm como ser dissecados num breve artigo de jornal. Por isso me limito a pinçar do projeto em causa todo o artigo 10.º, que me parece mais vistosamente destoante da Constituição. É que ele instaura um regime de rastreamento sobre as pessoas naturais que termina por lhes recusar os direitos fundamentais à “intimidade” e à “vida privada” (inciso X do artigo 5.º). Vida privada num plano intersubjetivo ou social, vida privada num plano espacial ou geográfico. Além de submetê-las a um tipo de investigação que, por independer do caso concreto e da apuração das coisas em autos oficiais, ignora os pressupostos também diretamente constitucionais da investigação criminal e da instrução processual penal.
Deveras, penso que esse artigo 10.º inverte as coisas. Investigação criminal e instrução processual penal não se instauram senão documentalmente. Assim como não são abertas a partir do nada. Ambas pressupõem a ocorrência de algo sinalizador, em sua materialidade, de infração penal. Algo já abstratamente definido como ilícito penal e a ser apurado quanto à respectiva materialidade. Isso na perspectiva da identificação do respectivo autor. Um só autor, ou mais de um, contanto que essa coautoria seja passível de quantificação ou determinação numérica. Não em aberto, porque, senão, a essa indeterminação subjetiva passa a corresponder uma permanente situação de suspeita criminal sobre todo mundo e um Estado-polícia por definição. Como se a máxima de que “o preço da liberdade é a eterna vigilância” (Thomas Jefferson) não fosse cunhada a favor dos particulares e contra ele mesmo, Estado. Não o contrário.
Claro que não se está a desconhecer o vínculo funcional entre o combate às fake news e a concreção do bem jurídico fundamental da “segurança pública”. Ainda assim, que esse imbricamento se faça a partir do recorte que o artigo 144 da Constituição já fez quanto a dois literais sujeitos jurídicos: de uma banda, o Estado; de outra, as pessoas privadas. O Estado como sujeito que tem o “dever” de assegurar à população tal segurança; as pessoas privadas como titulares do direito ao desfrute desse bem da vida e também como responsáveis pela respectiva prestação. Sem que a lei possa baralhar as duas categorias jurídicas, pois o substantivo “dever” é conatural à figura do Estado mesmo. Estado que tem como uma das suas justificativas existenciais a permanente desincumbência desse específico dever, justamente.
Já a responsabilidade, o seu significado técnico é de colaboração ou ajuda ou auxílio. Sem constituir-se numa das próprias razões de ser das pessoas privadas. Pelo que a lei não pode forçar os particulares a fazer as vezes do poder público. A se colocar no lugar dele. Mais uma advertência que fica.