Postado às 06h26 | 08 Set 2020
A pior coisa de ser um repórter na era de Donald Trump são, obviamente, os ataques que o presidente americano faz à imprensa livre. A segunda pior são os leitores bem-intencionados que dizem coisas como: “Obrigado pelo que você faz.”
Quando alguns de vocês que estão alarmados com a ascensão de Trump agradecem a um jornalista político ou um analista da televisão, estão alimentando nossos piores instintos – em direção à presunção, a fazer de nós mesmos o tema da reportagem e a tentar dizer exatamente o que você quer ouvir. E você está nos levando a uma tentação perigosa em um momento de pressão máxima sobre a liberdade de imprensa.
“Os muitos jornalistas que têm mapeado as ofensas incessantes de Trump por quatro longos anos, inclusive eu, inevitavelmente correm o risco de se tornarem artistas performáticos para leitores que já concordam com eles”, disse Frank Rich, produtor executivo dos seriados da HBO Veep e Succession e ex-colunista do New York Times. “Você deve se questionar se alguma dessas coisas influenciou um único eleitor de Trump.”
Trump obviamente reconhece o desejo da mídia de ter um papel importante na história, e está tentando explorá-lo. Ele colocou os meios de comunicação na disputa pela eleição de novembro. Ele ficaria claramente feliz concorrendo contra a NBC, o New York Times, a CNN ou a The Atlantic quanto está ao disputar contra Joe Biden.
Quando uma repórter da CNN perguntou a ele na semana passada acerca da violência de seus apoiadores, ele respondeu que “seus apoiadores” atiraram em um homem em Portland, Oregon, dando a entender que ela era responsável pelo tiro fatal em um apoiador de Trump, Aaron Danielson.
Se você assistir à Fox News, verá todos os dias como o Partido Republicano se define como uma legenda movida por queixas mais do que por qualquer política específica – e o principal alvo dessas queixas é a mídia. Isso aparece até mesmo no documento de uma página que faz o papel de plataforma de governo do Partido Republicano.
O grande dom de Trump é para a polarização, e ele levou muitas das pessoas que o odeiam a amar o jornalismo, particularmente em suas formas mais dramáticas, com ainda mais paixão. Assista ao noticiário da TV a cabo para ver os benefícios de desempenhar o papel do jornalista de televisão indignado.
A cobertura jornalística na Casa Branca era, antes de Trump, uma situação monótona, com repórteres acorrentados a uma sequência interminável, muitas vezes vazia, de eventos e briefings de rituais definidos. Agora, é um jogo de moralidade contínuo em relação à verdade, em que os repórteres se tornam famosos ao confrontar Trump por mentir, e o presidente encanta sua base repreendendo-os. Em seu aspecto mais revelador, isso expõe o antagonismo particular a perguntas diretas feitas por mulheres. Mas também é uma oportunidade irresistível para Trump se posicionar para as câmeras.
Lewis Raven Wallace, autor de um novo livro provocativo contra o jornalismo imparcial e “objetivo”, chamado The View From Somewhere, vai mais longe, argumentando que os repórteres deveriam deixar de vez a sala de conferências da Casa Branca. “Se eles levam a sério a salvaguarda da democracia, precisam construir um poder coletivo em torno de nem estar mais naquela sala”, disse Wallace em uma entrevista.
Mas, no mundo com fins lucrativos do setor midiático, os incentivos das vendas de assinaturas e da construção de uma marca pessoal impulsionam os jornalistas para a direção oposta. As operadoras tiveram sucesso em atrair assinaturas conforme o “time” político em que o potencial cliente está.
Há coisas que os jornalistas podem fazer nos próximos dois meses para resistir aos nossos impulsos mais autoindulgentes, fazer um ótimo jornalismo e se eximir da disputa das urnas.
Uma delas é reforçar a cobertura do ataque de Trump às instituições democráticas. Isso quer dizer não apenas para chamar a atenção para uma tática racista ou antidemocrática, mas introduzir novas reportagens acerca dos padrões claros de como Trump, por exemplo, “usa questões raciais para em benefício próprio”.
É melhor a cobertura se concentrar em ações perigosas – como ataques à infraestrutura de votação e a perseguição de inimigos políticos via Departamento de Justiça – do que nos intermináveis comentários ultrajantes do presidente.
É necessário também deixar pontos de vista claros. A maioria dos jornalistas vê o ataque de Trump às normas políticas americanas como uma crise; entendemos isso claramente porque alguns dos ataques são contra nós. E somos seres humanos com identidades e crenças que não são difíceis de encontrar nas redes sociais.
Se você é um leitor, pode gostar de jornalismo, apreciar seu papel na construção de uma sociedade livre e resistir à tentação de buscar por heróis que irão derrubar malfeitores da democracia. A alternativa aos heróis são instituições fortes e um reconhecimento de que as pessoas que nelas trabalham são humanas.
Os repórteres, apesar de toda a ostentação que começa nos noticiários da TV a cabo e chega às mídias sociais, são trabalhadores normais cujas qualidades estão frequentemente conectadas a determinadas qualidades que, em outros contextos, podem ser vistas como defeitos: obsessão, desconfiança, apetite por confronto e, às vezes, uma certa manipulação.
Essa dinâmica se apresenta com particular clareza no circuito de entrevistas televisivas. É um antigo mistério: os entrevistadores britânicos e australianos são muito melhores do que os americanos. Eles não têm dificuldade de se opor ao que diz seu interlocutor. É o que fez Kay Burley, da Sky News, que questionou de forma avassaladora um ministro do gabinete do país na quinta-feira da semana passada.
A resposta para essa deficiência pode estar no fato de que os apresentadores americanos querem ser simpáticos. Existem entrevistadores americanos duros, como Jake Tapper e Chris Wallace, mas o trabalho mais cobiçado e lucrativo no ramo da televisão é o de âncora de um programa jornalístico matinal – que deve ser uma figura “reconfortante” por “acordar” todos os dias ao lado do espectador.
O entrevistador ideal, por outro lado, faz você cuspir o café. Foi o que Jonathan Swan, repórter político australiano da Axios, fez quando desafiou Trump sem nenhuma formalidade em uma entrevista para a HBO. Você pode não querer ver Swan em sua cozinha pela manhã, fazendo expressões de desaprovação. Mas você quer que ele faça esse tipo de entrevista.