Postado às 07h06 | 22 Jan 2021
El País
Joseph Robinette Biden, veterano político de 78 anos, dormiu sua primeira noite na Casa Branca, ainda que privado do tradicional banho de multidões. O presidente mais votado da história dos Estados Unidos chega ao poder com maiorias exíguas nas duas câmaras do Capitólio. Toma as rédeas de um país abalado por uma devastadora pandemia, submerso na maior crise econômica desde a Grande Depressão e com o prestígio internacional no chão. Como se tudo isso não fosse o suficiente, assume o comando em plena ressaca de uma insólita revolta popular destinada a impedir que seja presidente. Uma insurreição espalhafatosa, cuja ameaça continua latente, protagonizada por hordas de fanáticos que acham que as elites progressistas são adoradores de Satã, canibais e pedófilos, e que a campanha de vacinação contra a covid-19, a única que pode começar a retirar o país do buraco em que se encontra, é algo assim como uma estratégia de Bill Gates para introduzir chips nas pessoas. “São tempos sombrios”, disse Biden aos seus seguidores em sua despedida de Delaware, entre lágrimas, pouco antes de voar a Washington. “Mas sempre existe luz.”
Para encontrar essa luz, o plano do 46° presidente norte-americano é começar o quanto antes e em grande estilo. De entrada, acelerar a distribuição da vacina, para atingir o objetivo de administrar a primeira dose a 100 milhões de norte-americanos em seus primeiros cem dias de mandato. Ao mesmo tempo, levar ao Congresso o pacote de resgate econômico no valor de 1,9 trilhão de dólares (10 trilhões de reais) preparado por sua equipe. O pacote, dividido em duas iniciativas legislativas, inclui uma nova remessa de pagamentos diretos à população e um aumento do salário mínimo para 15 dólares por hora (80 reais). Não contente com isso, já na quarta-feira deu os detalhes de seu projeto de lei de imigração, que proporcionará um caminho rápido à cidadania a aproximadamente 11 milhões de pessoas que moram nos Estados Unidos sem permissão legal de residêncCom essas bombas legislativas, e o precedente do monumental engarrafamento produzido no Capitólio pelos resgates econômicos aprovados desde que a pandemia surgiu no começo do ano passado, o presidente se dispõe a testar imediatamente a disposição dos legisladores republicanos a trabalhar com sua Administração. Suas esperanças de levar adiante toda essa legislação se encontrarão com a dura realidade de que os democratas possuem maiorias extremamente frágeis em um Congresso cuja Câmara alta (Senado) deverá se ocupar do julgamento político de Trump após seu impeachment na Câmara de Representantes.
Biden encontrará a mesma realidade para as criteriosas confirmações no Senado dos membros de seu Governo, cinco dos quais já estiveram na terça-feira diante dos comitês da Câmara alta para iniciar o processo. A confirmação no Senado pode ser apenas um trâmite para esse Gabinete de políticos experientes, diverso em etnia e gênero, mas com o estigma da Administração Obama e sem vozes conhecidas do setor progressista que vem dominando o Partido Democrata. O novo presidente também deverá lidar com a decepção da ala esquerdista de seu partido assim que acabar a trégua imposta pela gravidade dos últimos acontecimentos.
Com 44 anos como senador nas costas, Biden será a primeira verdadeira cria do Capitólio a ocupar a Casa Branca desde Gerald Ford (presidente entre 1974 e 1977). Baseia nessa experiência suas credenciais de político capaz de criar pontes entre os dois partidos. Não será fácil. Ainda que no privado muitos políticos republicanos respirem aliviados por deixar para trás a tempestade trumpista, não deixa de ser verdade que as ambiciosas propostas de Biden mexem diretamente nas tradicionais divisões ideológicas do país: o gasto público, os impostos, a saúde, a imigração, o tamanho do Estado.
Isso não é a Grande Depressão, mas todos notaram as menções a Franklin Roosevelt. Da mesma forma que ele com o New Deal, o projeto de Biden é o de sair de uma grave crise com um forte investimento público que, ao mesmo tempo, transforme a economia e aborde os grandes problemas endêmicos do país.
Por isso, enquanto sua equipe toma as medidas de seu campo de manobra no Capitólio, o presidente Biden se dispõe também a usar o poder executivo, pelo menos em seus primeiros dias, para reverter algumas das políticas mais controversas de seu predecessor republicano. Consciente de que lhe é conveniente marcar diferenças o quanto antes com a era Trump, o novo presidente resiste a esperar avanços do outro lado da avenida Pensilvânia e, sem se mover da Casa Branca, planeja assinar uma bateria de dúzias de ordens executivas nos primeiros 100 dias de presidência, com o risco de cair no abuso do poder executivo, justamente do que os democratas acusavam Trump.
Ele se dispôs a assinar uma dúzia de decretos ainda nesta quarta-feira. Entre eles, a rescisão da proibição das viagens de países muçulmanos, a adesão ao Acordo do Clima de Paris do qual Trump saiu, o uso obrigatório de máscaras de proteção em prédios federais e a ordem de encontrar a forma de reunir com seus pais os imigrantes menores de idade separados de suas famílias na fronteira. No segundo dia, ordens executivas para aumentar a capacidade de realizar testes diagnósticos de covid-19, e ajudas à reabertura de escolas e negócios. No terceiro, “ação imediata para proporcionar alívio econômico às famílias trabalhadoras”.
Em seus 50 anos de vida política, em seus 21 meses de corrida presidencial e, de maneira ainda mais clara, nos 78 dias desde que ganhou as eleições, Joe Biden ofereceu pistas suficientes sobre o tipo de presidente que deseja ser. Centrado nos grandes temas, sobre os que é preciso trabalhar um consenso. Suave nas formas, próximo no trato. Afastado do barulho, tanto do procedente do tóxico debate tuiteiro como o preferido pelas vozes mais altas de seu próprio partido. Mas os mesmos problemas que lhe arrebataram sua cerimônia na quarta-feira lhe farão renunciar a uma lua de mel. O presidente, alheio às estridências, aos alardes e aos golpes de efeito, sabe, entretanto, que somente uma arrancada enérgica pode ajudá-lo a deixar para trás os dramas e as feridas.