Postado às 06h53 | 26 Abr 2021
Estado
Uma questão crucial a ser elucidada pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) criada para apurar as responsabilidades do governo na crise pandêmica é: por que o País que tem um dos maiores sistemas de saúde pública do mundo, com histórico de sucesso no combate a outras doenças e um aparato de vigilância sanitária avançado, apresentou resultados tão catastróficos? Se a resposta, com todas as suas consequências, não vier à luz, não será por falta de subsídios da comunidade científica.
Como mostra um estudo conduzido por pesquisadores da Universidade de Michigan e da FGV, no início da pandemia o Global Health Security Index classificava o País como o mais preparado da América Latina para lidar com emergências de saúde pública. Daí a resposta bem-sucedida a epidemias como as de HIV/aids, hepatite C e H1N1.
O estudo sobre o Brasil integrou o livro The Comparative Politics and Policy of Covid-19, que reuniu mais de 60 pesquisadores para analisar governos de todo o mundo. Os resultados mostram que os países com melhor desempenho seguiram as orientações da Organização Mundial da Saúde e aliaram medidas de saúde a políticas sociais. Ou seja, ponto por ponto o contrário do que fez Jair Bolsonaro. “O presidente e seus apoiadores (governadores de quatro Estados, parte das Forças Armadas, alguns membros do governo, como o ministro das Relações Exteriores, e certos grupos de extrema direita) advogaram políticas públicas que refletiram uma pseudociência na melhor das hipóteses, e o negacionismo na pior.”
A pesquisa detalha como Bolsonaro empregou seus poderes constitucionais para minimizar a pandemia e boicotar os Estados. Um caso de prejuízo diretamente causado pela negligência do Planalto foi a demora no fechamento das fronteiras no início do surto. Outro, causado por sua ação direta, foram as medidas provisórias empregadas para obstruir os esforços de restrição da circulação por parte dos Estados, como a que indexou dezenas de serviços como “essenciais”. “Bolsonaro interferiu no Ministério da Saúde como nunca antes visto no período democrático”, lembrou uma das pesquisadoras. “Ele interveio em protocolos de tratamento e até no modo de divulgação dos dados da pandemia.”
Outro estudo, da revista médica The Lancet, identificou diversos problemas na gestão federal, entre eles as deficiências dos quadros levados ao Ministério da Saúde pelo ex-ministro Eduardo Pazuello, para substituir vários técnicos por militares sem competência, tal como ele, em saúde. Também questiona a subutilização dos fundos de emergência de R$ 44,2 bilhões aprovados em fevereiro. Até outubro de 2020 – período crítico para a contenção do surto – o Ministério havia empregado apenas 23% de seus recursos.
Além desses problemas, um levantamento da revista Science destaca a baixa capacidade de testagem. Até o final de 2020, o País havia testado apenas 13,6% da população, o que o coloca entre os que menos testaram no mundo, conforme o Our World Data, da Universidade de Oxford. O estudo também aponta a forte correlação no início da pandemia entre o número de mortes e as vulnerabilidades socioeconômicas. É outro ônus para o governo federal. Em emergências de saúde em um país tão grande e diverso como o Brasil, o Ministério da Saúde tem um papel fundamental na compensação das desigualdades regionais. Quando falta a articulação federal, as consequências podem ser catastróficas, como se viu na crise de abastecimento de oxigênio em Manaus.
Certa vez, Pazuello confessou que antes de assumir a pasta não sabia o que era o SUS. Talvez aprenda nos inquéritos a que será submetido no Congresso que a calamidade em sua gestão só não foi maior pela resiliência do sistema. Bolsonaro, por sua vez, tentou mobilizar congressistas para avançar a proposta de incluir os Estados na CPI. Não conseguiu, porque isso seria inconstitucional. Se fossem incluídos, seria outro tiro no pé do governo. Os levantamentos científicos são unânimes em apontar que o morticínio no Brasil só não foi pior por causa da atuação responsável da maior parte dos governadores.