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O SUS precisa saber que país queremos ser

Postado às 03h58 | 28 Ago 2020

Antonio Carlos do Nascimento - Estado

Distantes da sonhada reforma política, não caminhamos para nortes definidos, como ocorre na América entre republicanos e democratas, mas para duas frentes, que se podem fracionar no que a legislação permite, sob pena, porém, da pluralidade entre iguais dizimar suas causas, estejam à esquerda ou à direita. O estado pandêmico, porém, deixou ao menos nosso Sistema Único de Saúde (SUS) à margem dos embates entre os grupos e, muito embora tenha esbarrado na escassez global de insumos, assim como nas dissonâncias entre esferas governamentais, não lhe faltaram recursos. Com as estratégias que lhe foram possíveis, forneceu (e fornece) atendimento digno a seus usuários, sem permitir o temido colapso de seus serviços perante a pandemia.

Em 9 de março o presidente Donald Trump afirmava: “Nada vai fechar, a vida e a economia continuam”. E embora tenha declinado do equívoco uma semana depois, não demoraria para a América ver sua malha de saúde encontrar o caos. Faltavam máscaras, leitos, respiradores e profissionais, em cenário inimaginável no país desejado por fatia substancial do restante do mundo.

Não faltaram compaixão e vontade ao mandatário americano, o que Trump não tem é um sistema de saúde pública regido por “universalidade, integralidade e equidade”, princípios doutrinários do SUS.

Mas se nossa absoluta eficiência momentânea demonstra a elaborada estrutura criada e seu incrível potencial de poder resolutivo, não devemos perder de vista que o sistema de saúde foi readequado e desviado para o atendimento pandêmico na sua quase totalidade, tendo sido ainda acrescido de muitos leitos de UTI, hospitais de campanha e generoso número de equipamentos para diagnóstico e suporte à vida.

Vamos dissolver os hospitais de ocasião, mas restaremos com enorme número de leitos de alta complexidade nos hospitais preexistentes, os quais contemplam os de UTI, carência perene em nossa saúde pública. Vamos, então, deparar com duas realidades, uma antiga, a falta de recursos financeiros para subsidiar a contento o que vinha sendo executado; e outra nova, a estrutura herdada, que carecerá de recursos humanos e custeios adicionais.

Ainda que sem data para findar a ameaça biológica, já retornamos o SUS às velhas águas, assim como está sendo devolvido o leme ao timoneiro habitual, e então o jogo político assume o destino das angústias e dos sofrimentos de milhões de brasileiros. Ainda indefinido, o orçamento da saúde tramitará para votação no Congresso até o final de agosto, mas flerta com menos R$ 7 bilhões que o valor inicialmente endereçado à pasta em 2020. Quando a comparação observa os R$ 41,7 bilhões injetados em regime de urgência na pandemia, o corte orçamentário se aproxima dos R$ 49 bilhões.

O presságio ganha cruel adorno com a proposta de extinção do programa Farmácia Popular, que, levada a cabo, fará a tragédia decorrente da pandemia, que se aproxima dos 120 mil mortos, ser apenas um apêndice diante da enorme catástrofe que em médio prazo se estabelecerá. Deixarão de ser dispensados gratuitamente anti-hipertensivos, quando estimamos que um quarto da nossa população adulta seja hipertensa; não haverá entrega de antidiabéticos orais e insulina, sob a certeza de que ao menos 9% dos brasileiros tenham a doença. Isso para citar apenas as enfermidades mais prevalentes. O tempo mostrará também uma avalanche de sequelados de AVC decorrentes de descontroles pressóricos, insuficientes renais submetidos a hemodiálises por diabetes mal compensados, doença que ainda destina seus portadores à cegueira e à amputação de membros quando malconduzido seu tratamento.

O “Brasil não é um país sério” é frase corrente no arsenal de insurgentes temporários que habitualmente, sob o lúdico etílico entre amigos de copo, decidem explorar o cientista político que nesses instantes imaginam ser. O bordão é legado ao general Charles de Gaulle, embora o ex-presidente francês nunca o tenha dito. Mais problemático que essa desinformação histórica é o fato de que temos cá nossas dúvidas se somos ou não o país de brincalhões embutido nesse jargão (in)apropriadamente criado há quase 60 anos pelo diplomata brasileiro Carlos Alves de Souza Filho.

No primeiro dia de agosto deste ano, em Berlim, uma ruidosa aglomeração protestava contra as medidas governamentais de isolamento social no enfrentamento da covid-19. É quase inacreditável que a capital da pátria de números invejáveis na condução pandêmica possa concentrar 15 mil pessoas convictas de que seu governo participa de uma enorme conspiração marxista. O protesto em sua clara afronta aos avanços da ciência e ao sucesso da estrutura de vigilância epidemiológica daquele país, não fez o mundo enxergar a Alemanha naqueles manifestantes, pois os alemães não se veem neles.

A depender do que for feito ao SUS nas cadeiras de Brasília no próximos dias, imagino que Souza Filho, de onde estiver, se arrependerá, ou não, do que disse. E nossos governantes demonstrarão como querem ser vistos!

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