Postado às 06h22 | 07 Nov 2020
El País
A apuração das eleições dos Estados Unidos não está encerrada, mas à medida que avança a favor do candidato democrata, Joe Biden, alguns visualizam aquele momento nixoniano em que uma equipe de líderes de peso chega ao Salão Oval da Casa Branca para dizer a Donald Trump: “Senhor presidente, acabou.” Foi o que aconteceu com a visita que o senador Barry Goldwater e vários líderes republicanos fizeram a Richard Nixon em 1974 e foi o empurrão final para que o presidente renunciasse por causa do escândalo Watergate.
Desde 1797 e George Washington, todos os presidentes cederam o poder ao vencedor das eleições sem resistência. Mas a retórica incendiária do presidente Donald Trump sobre uma suposta fraude eleitoral levanta a dúvida sobre se escolherá o caminho de não aceitar o resultado final se a vitória for do seu adversário democrata. Essa possibilidade é imaginável depois do que aconteceu nos últimos dias, com um presidente autoproclamando-se vencedor de uma eleição sem que a apuração estivesse concluída e posteriormente afirmando que houve fraude em todos os lugares em que não ganhou ou perdeu a vantagem inicial que tinha antes da contagem dos votos enviados pelo correio, mais favoráveis aos democratas.
Donald Trump fala de votos legais e votos ilegais para se agarrar a um segundo mandato que parece escapar-lhe das mãos. Assim, pelos antecedentes, é previsível que continue com a batalha jurídica que já iniciou para questionar a votação em vários Estados e mantenha sua campanha de acusar os democratas de roubar-lhe a reeleição.
Em nenhum lugar está escrito que deve haver um discurso de concessão da vitória a um adversário, mas o que não está sujeito às interpretações trompistas e a Constituição recolhe é que na primeira segunda-feira depois da segunda quarta-feira de dezembro, no caso deste ano o dia 14, os membros do Colégio Eleitoral dos 50 Estados —mais o Distrito de Columbia— decidirão quem será o próximo presidente com base nos votos obtidos pelos candidatos em cada território. Além disso, no dia 3 de janeiro, o novo Congresso iniciará suas sessões e no dia 6 desse mês a Câmara dos Representantes e o Senado se reunirão para ratificar o novo presidente dos EUA. A posse acontece no dia 20 de janeiro.
Em todas as eleições da era contemporânea o processo foi realizado sem maiores incidentes. Mas a atitude do atual presidente desperta dúvidas.
Talvez Trump nunca faça o tradicional telefonema a Biden para dizer-lhe, em um acordo de cavalheiros, que perdeu e que a vitória é ao democrata, se isso for finalmente determinado pela apuração.
Talvez o círculo em torno do mandatário —por enquanto quase todo o Partido Republicano, salvo poucas exceções, evitou se pronunciar contra a ofensiva de Trump de questionar as bases do sistema democrático— tenha a tentação de dificultar o acesso de uma equipe de transição de Biden à Casa Branca até o último segundo de seu mandato, ou mesmo de boicotar a cerimônia de posse. Donald Trump pode fazer tudo isso sem entrar na ilegalidade, mesmo que rompa com décadas de tradição. O que não pode fazer é permanecer nem mais um segundo na Casa Branca depois do meio-dia de 20 de janeiro se não for nomeado presidente pelo Colégio Eleitoral. É verdade que se a eleição for muito apertada, Trump, como já está fazendo, vai recorrer a um exército de advogados e continuará incendiando as redes e os ânimos no Twitter ou em qualquer plataforma que lhe sirva de alto-falante, e recorrerá aos seus aliados republicanos em Estados-chave nas eleições para rejeitar o resultado.
Nesse sentido, embora os delegados do Colégio Eleitoral de cada Estado sejam de ambos os partidos e seu voto seja tradicionalmente concedido ao vencedor em seus territórios, existe a possibilidade de que os legisladores estaduais republicanos em lugares como Pensilvânia, Michigan e Wisconsin optem desta vez por declarar que apoiarão Trump. Os governadores desses Estados poderiam legalmente se interpor em seu caminho, levando ao novo Congresso uma lista de eleitores que apoiam Biden, mas tudo isso cria um cenário de caos no processo.
Houve outros candidatos que enfrentaram uma dura batalha pela eleição, como Richard Nixon em 1960 e Al Gore em 2000. Mas ambos acabaram concedendo a vitória ao adversário sem forçar o processo. Nixon desistiu de lutar pelos resultados de Illinois, apesar da suspeita de fraude, deixando o caminho livre para John F. Kennedy e evitando um combate rude –a margem de vitória de Kennedy no Colégio Eleitoral lhe garantia a eleição de qualquer maneira. No caso de Gore, o democrata aceitou a dura decisão da Suprema Corte que interrompeu a contagem na Flórida e jogou a toalha na disputa contra George W. Bush antes mesmo da reunião do Colégio Eleitoral.