Postado às 06h00 | 09 Abr 2020
Editorial do Estado de São Paulo
O exercício da diplomacia também está sendo bastante prejudicado em razão da epidemia de covid-19, que já levou ao cancelamento de diversos encontros multilaterais. Tal restrição ocorre no instante em que as relações internacionais já não estavam numa boa fase, particularmente em razão da emergência do nacionalismo radical capitaneado pelos EUA de Donald Trump.
Assim, a covid-19, antes de ser causa do distanciamento diplomático, começa a servir como “desculpa muito conveniente” para um esfriamento que já era desejado, como notou o ex-embaixador norte-americano Ronald Neumann, presidente da Academia Americana de Diplomacia, ao jornal Japan Times.
Ou seja, no momento em que a cooperação é imprescindível, muitos países se insularam ainda mais, na base do cada um por si, pondo em risco mesmo blocos consolidados, como a União Europeia, ou então a relação histórica entre EUA e alguns de seus aliados tradicionais.
Mas a emergência causada pela pandemia vem obrigando mesmo os EUA a abandonar momentaneamente sua atitude agressiva pelo menos em relação à China. Depois de ter chamado o novo coronavírus de “vírus chinês”, Trump, diante do avanço da covid-19 em seu país, teve de telefonar para o presidente da China, Xi Jinping, para estabelecer “estreita colaboração” – palavras do presidente norte-americano – no combate à epidemia. Não à toa: a China é o principal fabricante mundial de equipamentos e materiais hospitalares necessários para enfrentar o vírus, e os EUA, por sua vez, são hoje o principal foco da epidemia.
Se mesmo a maior economia do mundo entendeu ser necessário adotar o pragmatismo para lidar com a pandemia de covid-19, nada explica que o Brasil, cuja economia é apenas uma fração da norte-americana, se permita provocar os chineses numa hora dessas.
Primeiro, o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro, disse que “a culpa” pela epidemia “é da China”. Depois, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, numa publicação de teor preconceituoso nas redes sociais, sugeriu que a China se beneficia com a crise. Tudo isso em meio à dificuldade para obter equipamentos médicos chineses para combater a epidemia e diante da necessidade óbvia de manter aberto o mercado chinês para os produtos brasileiros, essencial para a recuperação do País.
Para sorte do Brasil, contudo, o governo Bolsonaro não se limita à ala lunática representada pelos filhos do presidente e pelos ministros “ideológicos”, quando não pelo próprio Bolsonaro. Há uma parte que faz o exato oposto, procurando reforçar as pontes com o exterior, em particular com a China, como lembrou, em entrevista ao Estado, o embaixador Sérgio Amaral.
“De um lado, o governo constrói, com a ministra Tereza Cristina (da Agricultura), o lado do agronegócio. Na área de infraestrutura, o ministro Tarcísio de Freitas desenvolveu projetos grandes que podem aumentar a produtividade”, comentou o embaixador. O problema, diz Sérgio Amaral, é que, “se de um lado o governo constrói, do outro destrói” – e isso num momento de grave retração do comércio mundial, que já vinha ocorrendo antes da epidemia e que agora tende a se acentuar.
Países como o Brasil não podem cometer erros dessa natureza. Até Bolsonaro, a diplomacia brasileira se pautava por nutrir boas relações com todo o mundo, justamente por não ter a força das grandes potências nem poder se permitir fechar portas. Hoje, o alinhamento incondicional aos EUA limita o horizonte comercial brasileiro e ameaça nossa posição até mesmo em mercados já conquistados.
Nesse sentido, o Itamaraty, como enfatizou Sérgio Amaral, está sendo incapaz de coordenar os interesses dos Ministérios na área externa, exatamente porque também está imerso na ideologia deletéria que move Bolsonaro e seus assessores aloprados. Por isso, quando acabar a epidemia, vaticina o diplomata, “o Brasil sairá enfraquecido”, carente de reformas e com um governo movido a complexo de perseguição: “O mundo não está contra o Brasil, nós é que estamos contra o mundo”.