Postado às 10h35 | 22 Mar 2020
El País
O madrilenho Juan Andrés conta que trabalha 18 horas por dia para que todos possamos voltar a abraçar nossos pais o mais rápido possível. Os dele, octogenários, estão fechados em sua casa em Madri, a cidade que se tornou um dos epicentros da pandemia mundial do novo coronavírus que, como um dominó, ameaça derrubar, um por um, os sistemas de saúde de todos os países. Andrés, nascido em 1964, vive há 30 anos nos Estados Unidos. É o diretor técnico da Moderna Therapeutics, a empresa de biotecnologia de Cambridge que obteve em tempo recorde a primeira candidata a vacina contra o vírus.
É uma corrida científica sem precedentes. Um relatório do Imperial College de Londres alerta que é necessário manter medidas de distanciamento social para evitar milhões de mortes até que chegue uma vacina, dentro de 12 a 18 meses.
Andrés luta, isolado com sua família em sua casa de Boston, para antecipar até as estimativas mais otimistas. Em 13 de janeiro, quando ainda era possível andar de mãos dadas pelas ruas, sua equipe recebeu o código genético de um novo coronavírus que começava a matar trabalhadores de um mercado de animais vivos na cidade chinesa de Wuhan.
Em 7 de fevereiro, a Moderna Therapeutics já tinha sua candidata a vacina. Na segunda-feira passada, depois de pular os testes habituais em animais, a empresa iniciou o primeiro ensaio clínico direto com voluntários humanos, em colaboração com os Institutos Nacionais de Saúde dos EUA. Andrés, criado nas ruas de Barrio del Pilar e Manoteras, no norte de Madri, traz uma mensagem de otimismo: “Vamos vencer”.
Pergunta. Como você trabalha com essa responsabilidade?
Resposta. Com muita motivação. Estou vendo muito de perto o drama que a Espanha está vivendo. Meus pais e meus quatro irmãos estão em Madri. É importante que as pessoas saibam que há outras pessoas que estão trabalhando muito muito muito duro para poder conseguir a vacina o quanto antes. Ainda não podemos prometer datas nem quantidades, mas podemos garantir que estamos todos mergulhados nisso, trabalhando 18 horas por dia. Paramos só para dormir. Estamos comprando equipamentos e correndo o mais rápido possível. E estamos tomando todas as medidas para [evitar a infecção das] pessoas que têm de ir às nossas fábricas.
P. O medo é que não possamos voltar a abraçar nossos pais ou avós até que haja uma vacina.
R. Exato. Tenho grandes esperanças de que no verão [que começa em junho no hemisfério norte] a capacidade de infecção do vírus diminuirá, mas não sabemos o que vai acontecer. Nossa motivação para ir o mais rápido possível é poder abraçá-los outra vez.
P. Antes de um ano não existirá uma vacina.
R. Acho que não. A questão com as vacinas, principalmente nas pandemias, é a quantidade que você consegue ter disponível. Quantas pessoas poderão ser vacinadas? Os especialistas dizem que há grupos de risco, principalmente os idosos e as pessoas que estão na linha de frente nos hospitais. Talvez eles e as pessoas dedicadas a atividades com contato social sejam os primeiros candidatos a receber a vacina. Quando estiver pronta, será preciso administrar as quantidades disponíveis para levá-las aos lugares onde façam mais falta, mas esse não é nosso trabalho. Será tarefa dos Governos e das autoridades quando a vacina começar a ficar disponível. E isso vai ocorrer dentro de meses.
P. O relatório do Imperial College falava de 12 a 18 meses.
R. Se serão 12 ou 18 meses, ainda não sabemos. Teremos de ver o que vai acontecer. Uma das grandes notícias é que na China estão encarando isso como uma coisa pessoal, porque eles têm sido o foco do mundo. Estão exportando máscaras e ajudando, há uma conscientização social tremenda. E também estão entrando na guerra para desenvolver uma vacina, não só para eles, como também para o mundo. Somos muitos nessa luta. Nós, na Moderna, fomos os primeiros a iniciar um ensaio clínico. O tempo dirá se poderemos continuar.
Estamos trabalhando com o pressuposto de que vamos ser os primeiros e querendo ser os primeiros. E estamos encantados por competir com quem quer que seja, porque isso significa que teremos, juntos, mais possibilidades de obter uma vacina a tempo.
P. Existe a possibilidade de que tenhamos uma vacina dentro de 18 meses e ela não funcione porque o vírus possa ter uma mutação, como o da gripe?
R. Acredito que não. Estamos monitorando o vírus e não parece que ele esteja sofrendo mutação a uma velocidade rápida. O vírus não sofre mutação, a não ser que encontre condições desfavoráveis. E, neste momento, o que está encontrando são condições superfavoráveis. O vírus entra no corpo dos humanos para se replicar e poder viver.
E não está encontrando nenhum problema. Não tem nenhuma necessidade de ter uma mutação. Quando houver mais soropositivos [pessoas que tenham superado a infecção e, teoricamente, desenvolvido imunidade] e consigamos vencer o vírus é que ele pode sofrer uma mutação. Ainda não sabemos, a comunidade científica verá. Alguns vírus se modificam quando suas condições para se replicar diminuem, mas não todos. Neste momento, as probabilidades de que ele tenha uma mutação são muito poucas e essa é uma notícia muito boa, porque significa que chegar à vacina é algo muito promissor, porque o vírus não vai mudar no meio do caminho.
P. Quais são os próximos passos?
R. Entramos em fase 1 [a primeira etapa de um ensaio clínico, para ajustar a dose e descartar possíveis efeitos colaterais graves], com voluntários. Obviamente, com as vacinas só são feitos ensaios com voluntários saudáveis, porque é um tratamento preventivo. Enquanto não tivermos dados, não saberemos a dose necessária e não poderemos calcular o tempo que levará. O que estamos fazendo é correr o mais rápido possível. Normalmente, quando você está na fase 1, não começa a fabricar para a fase 2.
Eu já estou fabricando para a fase 2 [a segunda etapa dos ensaios, na qual a eficácia da vacina é avaliada com mais voluntários]. E eu já estou me preparando para fabricar nas maiores quantidades que pudermos. A próxima pergunta é: quantas doses vamos poder fazer? Não sei, porque ainda não sei a dose. A capacidade será cinco vezes maior ou cinco vezes menor se funcionar com dose de 50 microgramas ou se forem necessários 250 microgramas. Isso determinará quando a vacina estará disponível. Estamos fazendo um esforço além do sobre-humano, para que esteja disponível o mais rápido possível.
P. Quando serão conhecidos mais resultados?
R. Dentro de oito a 12 semanas, saberemos o nível de atividade em alguns voluntários. Então começaremos a alcançar centenas de voluntários e depois, milhares. A partir daí, já teremos os dados para começar a vacinar as pessoas. Nossa tecnologia é completamente nova. Temos uma série de vacinas [para outras doenças] que já estão na fase 2 e seu nível de toxicidade é muito baixo. É por isso que as autoridades americanas nos deixaram começar diretamente em humanos.
P. Existe a possibilidade de que a vacina da Moderna fracasse na fase 3 [os futuros ensaios destinados a avaliar a segurança e a eficácia do tratamento em larga escala]?
R. Sempre há risco, mas quanto mais avançado você estiver em suas fases, maiores serão as probabilidades de sucesso. Até agora, todas as candidatas a vacina que temos em andamento estão funcionando. Estou muito otimista, por duas razões: porque conheço a tecnologia que temos na mão e porque estamos tentando tudo.
Cada um dos nossos cientistas, cada um dos nossos funcionários, deve ter a sensação de que vamos salvar o mundo, porque é a motivação que nos fará seguir em frente. Mas é preciso manter a modéstia. Essa é uma das poucas crises da humanidade em que cada um tem uma tarefa. Haverá milhões de heróis. E não tenho absolutamente nenhuma dúvida de que vamos vencer, mas temos de fazer isso juntos.
P. A vacina contra a poliomielite, apresentada em 1955, não foi patenteada. De quem será a patente se dentro de alguns meses houver uma vacina desenvolvida pela Moderna?
R. Ainda não consideramos isso. Nós temos uma plataforma [de medicamentos baseados no RNA mensageiro]. Não é só uma questão de patente, é uma questão de saber fazer, de tecnologia. Mas, no momento, não consideramos absolutamente nada nesse sentido.
P. Esta seria a primeira vacina baseada no RNA mensageiro.
R. Exato. O RNA mensageiro é uma molécula de informação. O corpo humano, basicamente, tem quatro coisas: água, carboidratos (que é a energia), gordura (que é o armazenamento de energia) e proteínas. Todas as proteínas são geradas através das instruções no DNA, que são traduzidas por meio do RNA mensageiro. Se há algo que nosso corpo sabe fazer bem, é RNA mensageiro para produzir proteínas. O cabelo, as paredes das células, os hormônios... tudo isso são estruturas proteicas e tudo é conduzido através do RNA mensageiro.
Nossa plataforma está baseada nisso. Assim que as autoridades nos deram o código da proteína Spike [a chave com a qual o vírus abre a porta para as células humanas], geramos imediatamente o RNA mensageiro [a vacina da Moderna Therapeutics se baseia em injetar um RNA mensageiro que produz a proteína S do vírus, mas não o resto do agente patogênico, para gerar uma imunidade sem riscos]. Fizemos isso em questão de dias. De 13 de janeiro a 7 de fevereiro, fizemos a vacina para o primeiro ensaio. Esperamos duas semanas para garantir a esterilidade e a enviamos ao Governo.
Os Institutos Nacionais da Saúde dos EUA já estão fazendo o primeiro ensaio clínico e estamos colaborando com eles. Estamos indo muito rápido.
P. É uma tecnologia completamente nova.
R. Somos uma empresa pequena, ainda não temos produto no mercado. Temos muitos produtos em pesquisa e, obviamente, a tecnologia é de ficção científica. Usamos o corpo humano como biorreator. Damos a ele o RNA mensageiro e o próprio corpo produz a proteína. É por isso que temos a possibilidade de ir mais rápido que o resto. Como não somos uma grande empresa como Merck, Johnson & Johnson, Novartis ou Pfizer, nossos recursos são limitados, mas colaboramos com os Governos para poder fazer a vacina em grandes quantidades. Temos uma fábrica aqui em Massachusetts e, à medida que formos sabendo os resultados, começaremos a produzir o máximo que pudermos.
P. Vocês recebem financiamento da Coalizão para a Preparação de Inovações contra Epidemias [CEPI, na sigla em inglês, fundada pelos Governos da Noruega e da Índia, pela Fundação Bill & Melinda Gates, pelo Wellcome Trust e pelo Fórum Econômico Mundial].
R. Para o primeiro ensaio, recebemos financiamento da CEPI e tivemos colaboração das autoridades americanas. Temos feito isso um pouco de forma tripartite. Esse foi o primeiro ensaio, agora temos de continuar. Permanecemos em contato com a CEPI, com o Governo americano e com outra série de autoridades, como a OMS, para continuar colaborando em tudo.
P. A CEPI calcula que 1,8 bilhão de euros [9,8 bilhões de reais] sejam necessários para desenvolver uma vacina contra o novo coronavírus [a CEPI financia outras sete iniciativas diferentes para chegar a uma vacina].
R. Esses cálculos são sempre teóricos e baseados no passado. Isso é o desenvolvimento, mas depois é preciso produzi-la. E produzi-la exige uma infraestrutura absolutamente monumental. Estamos falando de dezenas de milhões de doses. Obviamente, quando chegar a vacina já haverá muitos soropositivos, mas existem muitas incógnitas. Não sabemos se o vírus sofrerá mutação e ocorrerá algo parecido com o que aconteceu com o da gripe, de modo que seja necessário fazer imunizações todos os anos.
Ou se bastará uma imunização, como no caso da poliomielite, e seria possível erradicar a doença. Ainda não se sabe.
P. Com a pandemia de gripe H1N1 do ano 2009, os países ricos começaram a monopolizar os estoques de vacinas. Isso tentará ser evitado desta vez?
R. Aí não podemos nos meter. A única coisa que podemos fazer é nos colocar nas mãos das autoridades e realizar nosso trabalho. Estamos na parte científica e procurando fazer os ensaios clínicos o mais rápido possível. É uma guerra contra o tempo.