Postado às 05h24 | 07 Jul 2020
El País
Nélida Piñón (Rio de Janeiro, 83 anos), membro da Academia Brasileira de Letras e ganhadora prêmio Príncipe de Astúrias de Letras em 2005, escreveu em Vozes do deserto uma ficção prolongando a metáfora de Sherazade. Agora, enquanto assiste às terríveis consequências da pandemia de coronavírus no Brasil, confia também em que a ficção, a narrativa, seja útil para confrontar um drama que a mítica personagem a quem ela deu voz superou graças à sua capacidade de contar para vencer a opressão e o esgotamento. Ela continua escrevendo. Sua última obra está prestes a ser lançada na Espanha e, embora esta seja sua principal tarefa, inventar, ela não deixa de se condoer pelo que ocorre em sua terra e no mundo. Disto falou por Skype, de sua casa no Rio de Janeiro, avisando ao repórter espanhol que “o Brasil vive um momento de rancor generalizado”, ao mesmo tempo em que exibe o que está à vista em seu escritório, “cheio de pilhas de papel, originais —toda minha vida criativa está aqui dentro”— .
Pergunta. O que é a sua vida criativa agora?
Resposta. É a capacidade que tenho de adicionar à minha vida tudo o que está fora. O criador trabalha a partir do que existe e do que existiu. Sou uma mulher que acredita que só se pode ser contemporâneo se se for arcaico. Navego nas águas dos gregos, dos persas, das Américas e do mundo. Não faço uma distinção profunda de onde estou, quem sou ou de que época.
P. Este período se parece com o que Sherazade combatia, falando para que a condenação não se cumprisse. Agora se vive uma condenação, e conversamos para que a noite não caia…
R. A humanidade sempre sofreu grandes dificuldades. Nunca houve uma época frutífera, só instantes de celebração, mas cada vez que a humanidade fracassa seguimos em frente. Agora se fala da globalização, mas os vikings já começaram esse processo; e o fizeram os gregos com Alexandre, os bucaneiros ingleses do Caribe e os extraordinários globalizadores portugueses. Sempre foi assim. Todos abriram espaços para a globalização. O que acontece é que hoje vendemos nossa liberdade de indivíduos pátrios por objetos perecíveis sem nenhum valor. Não tenho medo, enfim, do dano que possa ocorrer, porque o pior já está ocorrendo.
P. O que foi o pior do pior?
R. Se não percebermos a força desta advertência histórica que ameaça a civilização é porque não estamos preparados para sobreviver. É preciso que estejamos preparados para sair disto e tentar ver o que impede nossa sobrevivência. Por trás de tudo isto estamos vivendo uma explosão demográfica. A terra tem dificuldades para abraçar oito bilhões de pessoas. Ninguém quer ficar na África, ou na Europa, ninguém quer ficar onde está, sempre estamos procurando um lugar onde se possa assegurar a fortuna… Mais do que nos deslocando geograficamente, estamos nos deslocando em espírito, e nisto vejo insatisfação, necessidade, um infortúnio extraordinário. Como se não tivéssemos futuro, nos empenhamos em apagar os fatos do passado. O passado não se destrói, mas é preciso corrigir os desvarios do presente.
P. Como qualificaria este momento moral da humanidade?
R. A humanidade nunca teve um código moral que servisse a todos! Os códigos que tivemos serviam a alguns, aos donos do código, aos que o escreveram e não aos que padeciam os horrores desse código. Desde a Bíblia, os códigos beneficiavam só uma parcela da população. Outros eram escravos da vontade alheia… O que vejo hoje é uma desunião que privilegia interesses próprios. A União Europeia demorou muito a ajudar; teve e tem medo da segregação, de que possam surgir outros Brexits. Assim como na América, não estamos unidos, há interesses.
P. Você tem muita relação com a Galícia, com a Espanha [a escritora é filha de galegos]. Como viveu, do Brasil, a situação desse país?
R. Foi uma grande dor, mas de alguma forma as dores que vinham da Itália prepararam para as futuras tragédias. A Itália nos advertiu: preparem-se. Quando a tragédia chegou à Espanha, imagine o que senti… Como isso podia acontecer na Europa? Supunha-se preparada para entrar no éden, no paraíso econômico e na justiça. As pessoas acreditavam estar sob as bênçãos de um deus econômico, poderoso. Eu me dava conta de que isto se arrastaria por todo o mundo, mas que semearia menos pânico. O pânico teve uma força poderosa, mais do que a pandemia, talvez. Veremos, porque há muitos mistérios, muito que não sabemos e muitas verdades que sairão dos laboratórios farmacêuticos, porque não nos dizem o que está acontecendo.
P. Um susto mundial, portanto.
R. Os brasileiros estão muito abalados, o mundo inteiro está assustado. Agora, além disso, assusta essa palavra espanhola, brote [surto]. É impressionante seu sentido simbólico. O surto está estabelecendo nossos limites. A partir de agora não temos liberdade, porque somos vítimas do próximo surto. Não se pode gozar sob a tutela do surto.
P. Como está vivendo a situação no Brasil?
R. Como todos, vi com visão crítica e muito dolorida. Ter um governante que não se dá conta do peso da pandemia e do que está acontecendo no mundo é uma enorme tristeza. Os fracassos que chegam de Brasília nos educaram há muito tempo para o sofrimento. É como se se pudesse esperar o pior de Brasília. É um câncer que começou há muito. Chego à conclusão de que as administrações se impõem a favor de seus interesses e não dos do povo. Sinto um profundo descrédito do poder, como o que agora vive o Brasil.
Se não percebermos a força desta advertência histórica que ameaça a civilização é porque não estamos preparados para sobreviver
P. Vale hoje no Brasil a opinião de uma intelectual como você?
R. Não acredito muito no poder do intelectual. As pessoas hoje levam muito mais em conta o que sai na televisão do que o que se fala em um livro. O Brasil se volta para os seus próprios interesses com uma visão paroquial. Hoje não tem grandes políticos, grandes oradores, personalidades em quem confiar, que expressem as necessidades reais. No meu entender, os políticos são um fracasso. Como intelectual, percebo minhas limitações, mas sei que meu dever é continuar criando, escrevendo. Meu dever como intelectual brasileira é continuar produzindo livros; tendo à independência total, estética, moral, sem medo da histeria.
P. Vocês aí têm tido um espetáculo político intenso: a disputa entre o presidente e o ministro da Justiça [Sergio Moro] que ajudou a levá-lo ao poder… O que sentiu diante desse vaudeville?
R. Moro tampouco é inocente. Bolsonaro é uma figura pela qual não tenho nenhum respeito, mas me parece que Moro se reconciliou com seus inimigos. Hoje vejo Moro com certa prevenção. Mas é, de todas as maneiras, um personagem. Talvez eu deva escrever um romance sobre a tragédia do poder, embora não saiba se poderia escrever sobre um personagem como Bolsonaro.
P. Nessa tragédia de personagens ressurge Lula, que foi tão premiado na Espanha. Como vê sua relação com este momento?
R. Não é preciso que Lula fale. Ele manchou sua biografia até então respeitada. Lula e a elite política brasileira são responsáveis pelo questionável Governo da presidenta Dilma e pela eleição do presidente Bolsonaro. Suas condutas, além de seus feitos administrativos, provocaram uma total incredulidade no eleitorado brasileiro. Uma profunda tristeza.
P. Como sente, em sentido metafórico, neste tempo difícil, que soa a música do Brasil?
R. Pode ser uma conjugação de todos os acordes musicais do mundo. Os brasileiros são muito musicais, mas talvez não tenhamos feito a música que possa limpar o que estamos sofrendo: miséria, falta de emprego, insegurança com o futuro, descrédito do poder e das instituições… O que Brasília produz não está a favor do povo. É natural que estejamos tristes e que olhemos de forma desapegada para o poder.
P. O país pode ser visto agora como uma harmonia rompida?
R. Ao longo da história do Brasil sempre houve fraturas, como em qualquer país, mas independentemente da tragédia é um país alegre. Só precisa administrar essa alegria de modo que não se perca nas exaltações. É preciso ser alegre e triste, alternar um pouco. Não se pode ser alegre o tempo todo. Quando você passa a ser triste é quando pode corrigir a realidade. O Brasil tem uma história muito fascinante, mas também de desapego da realidade do pobre. Teremos que fazer correções dramáticas. Temos racismo; todo mundo é racista, e o Brasil é porque somos herdeiros do racismo do mundo, da Europa, dos Estados Unidos… Não o inventamos, o herdamos, e naturalmente nos pareceu que beneficiava as elites. É um país que tem uma integração geográfica extraordinária, não aconteceram conosco as fraturas bolivarianas, temos uma língua deslumbrante que soube permitir que cada canto criasse neologismos; uma literatura muito rica, artistas, cineastas, e essa gente do samba, as canções populares nas escolas, uma arte extraordinária. Portanto, é um país que tem muita hegemonia e possibilidade de defender seus estatutos históricos.
P. E agora sofre.
R. Não gosto muito da noção de sofrimento, não acredito que seja necessariamente redentor. Acredito que o sofrimento seja muitas vezes traumático, impede de pensar, de criar. Por isso aposto num futuro do Brasil que não merecerá o silêncio, virão grandes transformações, e espero que sejam benéficas, não totalitárias, nem de esquerda nem de direita.
P. O país do futuro, e sempre será, como dizia Stefan Zweig.
R. Ele só disse que era o país do futuro… Mas o futuro está demorando muito! O futuro é abstrato, inaudito, só vale o presente que vamos vivendo, e tomara que não tenhamos que disfarçá-lo para que pareça de ouro, ou mais justo, mais poderoso, mas sim que venha graças à indústria, aos bancos, à extraordinária agricultura brasileira que hoje alimenta um quarto da humanidade… O mundo vai comer graças ao Brasil! É um país que não pode ser periférico porque não tem essa vocação.
P. Esse seu otimismo está em um de seus últimos livros: “Falta-me vocação para ser triste”.
R. Tenho momentos tristes, porque se não estaria desconectada da realidade. Sou estudiosa da história, leio os séculos com um prazer imenso e sei qual é a história da humanidade. Uma história absolutamente desencontrada, que alterna tragédias, genocídios… A Europa é a Europa de milagre, sofreu invasões pelo Danúbio, os mongóis chegaram pela Hungria, todos os povos se deslocaram, cada um pôs sua história, sua gênese, seu sangue, sua língua. Muitas de nossas línguas vêm do latim, mas outras estão escritas a sangue, impostas mediante tanta gente assassinada, hecatombes históricas, invasões. Não se pode considerar que a Europa seja um território suave, agradável, deslumbrante. Não. Nasceu das lágrimas, como nós, matamos índios, fomos terríveis com os negros…
P. Como aponta esse joelho de um homem que asfixia outro em Minneapolis.
R. É a prova de que os norte-americanos nos superaram em racismo. É terrível, como se ainda estivesse entre nós a Ku Klux Klan: somos capazes de odiar um negro por sua pele. Mas somos racistas com os negros assim como com as mulheres, não suportamos quem é diferente, o vizinho. Esse “não posso respirar” é um hino do horror humano, somos capazes de tudo. E para quê? Para sobreviver ou para impor nossa vontade? Não matamos só por nosso pão e dos nossos filhos. Matamos por um espaço que tem de ser unicamente nosso.
P. Seu pai a ensinou a dar flores e livros de presente. A esta altura da vida, que presente espera?
R. As flores e os livros do meu pai são a memória de meus ancestrais. O que realmente considero um presente, mais que estar viva, foi o esforço de entender por que estou na Terra e o esforço da tolerância. Isso é o que mais quero. E, evidentemente, outro presente que quero é continuar escrevendo.
P. A tolerância, que esforço difícil.
R. O Brasil vive um momento de rancor generalizado. Choro diante desses sentimentos exacerbados.