Postado às 06h02 | 06 Ago 2020
Vista aérea da arrasada área portuária de Beirute.© AFP
Diário de Notícias, Lisboa, Portugal
Com uma história de agitação social, uma guerra civil de 15 anos, domínio da Síria, invasão e ocupação por Israel, e a influência do Irão através do Hezbollah, a curta história do Líbano pós-colonial é uma sucessão de episódios com desastres e crises sucessivas.
Antes do mais recente desastre no Líbano, os cidadãos já estavam a passar mal, com o Estado a precisar de urgente ajuda internacional para tentar evitar o colapso total.
"Nós, libaneses, estávamos habituados a uma vida com um certo conforto", disse Gloria, uma sexagenária de Beirute ao Le Monde. "Mas hoje em dia, com a crise, já não podemos comprar nada. A 'Suíça do Médio Oriente', como denominávamos o nosso país, vai tornar-se num novo Afeganistão", lamentou.
Em 2018, o PIB per capita do Líbano diminuiu e a dívida pública atingiu o terceiro maior valor do mundo, 170% do PIB. Mas o pior veio nos meses mais recentes: as previsões apontavam para uma contração do PIB de 12% e para que metade da população ficasse abaixo da linha da pobreza, mas com a libra libanesa a desvalorizar cerca de 80% em relação ao dólar e a inflação fora do controlo -- é agora o segundo país em hiperinflação, ao lado da Venezuela -- ao que se somam os efeitos da pandemia e da explosão, o panorama é desolador.
Nos últimos meses os serviços básicos como a eletricidade (e a internet), a água e os transportes públicos, que já não eram um modelo, afundaram-se em linha com a economia.
Impasse na ajuda financeira
A ajuda financeira não se concretizou. A doação de 11 mil milhões de dólares, prometida em 2018 numa conferência internacional em Paris, dependia da aplicação de reformas, pelo que não saiu do papel. Em março o país entrou em incumprimento em relação ao pagamento de uma dívida de mil milhões de euros.
O novo governo, liderado por Hassan Diab, apresentou no final de abril um plano de recuperação económica, assente na banca, no turismo e na agricultura, tendo recebido críticas pelas opções apresentadas.
As conversações com o Fundo Monetário Internacional (FMI) estão num impasse, embora na sequência do desastre, possa haver pressões internacionais para que haja cedências de parte a parte. Do lado libanês, o Hezbollah anunciou aos quatro ventos que irá vetar qualquer acordo que implique a "imposição de condições". O grupo político-militar xiita propôs em alternativa uma viragem a leste, um sinal de que veria com bons olhos um empréstimo da China.
Algures entre 250 mil e 300 mil pessoas ficaram sem tecto depois de as suas casas terem sido destruídas pelas explosões. As reparações na cidade podem custar pelo menos 5 mil milhões de dólares, segundo uma estimativa do governador da capital, Marwan Abboud.
Só o porto, disse Abboud, custará uns 3 mil milhões a reconstruir. O porto é de vital importância para o país, que depende de até 80% da importação de alimentos. Com os silos destruídos nem porto para receber importações, existem sérias preocupações sobre segurança alimentar, num país que conta com 890 mil refugiados oriundos da Síria.
Não bastasse, e o setor da saúde está também em grave crise. Em março a Human Rights Watch alertava que devido à grave crise financeira, o Estado não só agravava a dívida aos hospitais (era então de 1,3 mil milhões de dólares), como o país só tinha conseguido importar 10% dos materiais médicos e de proteção de que necessitava.
E se o Líbano tinha sido poupado na primeira vaga da pandemia, agora está a lutar com um número crescente de casos, ao que tem de juntar milhares de pessoas com lesões graves sofridas nas explosões.
O que levou ao desastre económico?
Para os especialistas na região, o mesmo sistema que levou à divisão sectária dos poderes que procura a paz social e a estabilidade é o mesmo que aloja uma casta de funcionários públicos ineficiente e corrupta, tal como a elite, e que sobrevive às tão propaladas reformas.
Ao que se soma a influência do Hezbollah, um tentáculo político-militar patrocinado pelo regime iraniano. O assassínio do primeiro-ministro libanês Rafik Hariri em 2005, pelo qual membros do grupo militante estão a ser julgados ou a guerra com Israel no ano seguinte demonstra o poder deste grupo, designado terrorista pelos EUA e Alemanha (a UE faz a separação entre movimento político e milícia e apenas considera a última terrorista) .
O Hezbollah e os seus aliados utilizam o Líbano como plataforma para apoiar o regime do presidente sírio Bashar al-Assad, o que contribuiu de forma direta para o colapso económico sem precedentes.
Como escreve Mona Alami no Atlantic Council, "com o crescente estatuto do Líbano como Estado pária e o seu contínuo apoio indireto a Damasco, apesar da sua terrível situação, o destino do Líbano parece estar irreversivelmente ligado ao da Síria".
Com a guerra na vizinha Síria, o Líbano viu-se envolvido num confronto entre o Irão e os países do Golfo Pérsico, bem como com os Estados Unidos. Foi através do Hezbollah que o Irão abasteceu Assad com meios humanos para combater quer os grupos rebeldes quer os extremistas que tentaram depor o regime.
Em 2016, o líder do Hezbollah Hassan Nasrallah entrou em confronto com a Arábia Saudita ao afirmar que "a família saudita será derrotada no Iémen", em referência à guerra que os sauditas lideram contra o país mais pobre da região.
No ano seguinte, a tensão entre sauditas e libaneses atingiu o auge, quando o primeiro-ministro Saad Hariri, de visita a Riade, anuncia na TV a sua demissão, tendo alegado a interferência do Irão e do Hezbollah. Hariri ficou retido na capital saudita e depois de uma visita do presidente francês Emmanuel Macron, acabou por regressar a Beirute e renunciar à demissão.
Com o Hezbollah a fornecer petróleo e farinha a preços subsidiados para Damasco, as decrescentes reservas de moeda estrangeira do Líbano foram ainda mais reduzidas.
"Economistas que falaram na condição de anonimato acreditam que, em 2019, mais de 2 a 3 mil milhões de dólares de petróleo subsidiado importado para o Líbano foi contrabandeado para a Síria. Apesar do colapso económico e da escassez de dólares no Líbano desde outubro de 2019 e do cumprimento pelo governo da decisão de apoiar produtos básicos, o gasóleo e a farinha continuam a ser contrabandeados para a Síria", escreve Mona Alami.
A situação foi agravada, segundo explica a BBC, com um esquema Ponzi gerido pelo banco central. Este contraía empréstimos de bancos comerciais a taxas de juro acima do mercado
Segue-se um breve resumo de acontecimentos no Líbano desde a sua independência de França, há 76 anos, com base na AFP:
Partilha de poderes
O pequeno país mediterrânico torna-se independente em 22 de novembro de 1943, após 23 anos sob mandato francês.
.Um "pacto nacional" estabelece um acordo de partilha de poder entre cristãos e muçulmanos que ainda hoje está em vigor. Esse acordo estipula que o presidente terá de ser cristão maronita, o primeiro-ministro muçulmano sunita e o presidente do Parlamento muçulmano xiita.
Segundo o World Factbook da CIA, há 54% de libaneses muçulmanos, 40% de cristãos e 4% de drusos.
Primeira guerra civil
Uma guerra civil de cinco meses irrompe em 1958 quando os muçulmanos, apoiados pelo Egito e pela Síria, pegam em armas contra o regime pró-ocidental.
O presidente do Líbano, Camille Chamoun, apela à ajuda dos Estados Unidos e Washington envia tropas. Bem-sucedidos na repressão da revolta, retiram-se após três meses.
Palestinianos assentam quartel
Após a derrota árabe na Guerra dos Seis Dias de 1967, as primeiras bases palestinianas são estabelecidas no sul do Líbano, na fronteira com Israel e a Síria.
Em 1969, o Líbano legaliza a presença palestiniana armada no seu território ao abrigo do Acordo do Cairo.
Na sequência dos sangrentos confrontos do Setembro Negro na Jordânia em 1970, a Organização de Libertação da Palestina (OLP) de Yasser Arafat retira-se para o Líbano.
Segunda guerra civil
Em 1975, uma guerra civil de 15 anos começa com milícias cristãs que combatem palestinianos, os quais são apoiados por forças de esquerda e muçulmanas.
No ano seguinte, o exército sírio intervém, com a aprovação dos EUA, após um apelo das forças cristãs em confronto.
Em 1982, Israel invade e sitia Beirute. Arafat e 11.000 combatentes palestinianos evacuam a capital.
Em setembro desse ano, uma milícia cristã massacra pelo menos 1.000 pessoas nos campos palestinianos de Sabra e Shatila em Beirute.
A guerra termina em 1990. Mais de 150 mil pessoas foram mortas no conflito e 17 mil desapareceram.
Domínio sírio
A presença militar e política da Síria é cimentada num tratado de 1991 entre Damasco e Beirute.
Israel mantém a sua ocupação do sul do Líbano, retirando-se apenas em 2000.
Em 2005, o antigo primeiro-ministro libanês Rafic Hariri é morto num atentado bombista em Beirute, assim como outras 21 pessoas. Os que se opõem à Síria culpam Damasco, que nega qualquer papel.
Manifestações maciças levaram a que todas as tropas sírias se retirassem do Líbano no mesmo ano, pondo fim a um destacamento de 29 anos.
Israel vs. Hezbollah
Em 2006, eclodiu um conflito entre as forças israelitas e o poderoso movimento xiita libanês Hezbollah, fundado em 1982 durante a guerra civil.
A agitação é desencadeada pela captura pelo Hezbollah de dois soldados israelitas da zona fronteiriça do sul do Líbano.
A devastadora guerra de 34 dias custa ao Líbano cerca de 1.200 vidas, na sua maioria civis.
Guerra na Síria
Em 2013, dois anos após o início da guerra civil da Síria, o Hezbollah intervém em apoio ao governo de Damasco.
O conflito sírio fortalece a divisão das coligações políticas do Líbano e aumenta os problemas do país. Em julho havia 890 mil refugiados sírios no país.
Agitação contra o regime
Em 2019 surgem protestos, desencadeados por um plano governamental para tributar as chamadas telefónicas em linha efetuadas através de aplicações.
A agitação transforma-se numa revolta nacional envolvendo centenas de milhares de pessoas, atravessando linhas sectárias, contra a sensação de inépcia e corrupção da classe dominante.
Em abril de 2020, o Líbano, que não honrou a sua dívida, aprova um plano para relançar a economia, mas as negociações com o Fundo Monetário Internacional estão paradas.
Explosão mortal
A 4 de agosto, duas explosões no porto de Beirute devastaram bairros inteiros da cidade, matando mais de 135 pessoas, ferindo milhares e deixando centenas de milhares de desalojados.
O governo diz que a explosão maciça terá sido provocada por um incêndio que atingiu 2.750 toneladas de nitrato de amónio deixadas sem segurança num armazém.