Postado às 07h08 | 17 Ago 2020
Imagem da manifestação contra Lukashenko neste domingo em Minsk.SERGEI GAPON / AFP
El País
Aleksandr Lukashenko não está disposto a deixar o poder. O líder autoritário, que governa a Bielorrússia com mão de ferro desde 1994, recusa-se a repetir as eleições presidenciais, apesar das enormes suspeitas de fraude. “Se destruírem Lukashenko, será o começo do fim”, clamou ele neste domingo em Minsk diante de milhares de seguidores, em uma manifestação para a qual convocou e transportou partidários de vários pontos do país. Mas a realidade é teimosa, e nas ruas da capital e de outras cidades uma maré humana vem exigindo sua renúncia, nas maiores mobilizações da história da Bielorrússia. Enfraquecido, o líder bielorrusso recorreu ao presidente russo, Vladimir Putin. Neste domingo, o Kremlin confirmou que está disposto a apoiá-lo mesmo tendo se transformado em um aliado problemático, aumentando a tensão e os temores de uma possível intervenção militar.
“Não os convoquei aqui para que me defendam, mas para que defendamos nosso país, nossas famílias, nossas irmãs, esposas e filhos”, ressaltou Lukashenko em um apelo emocional a seus partidários na Praça da Independência de Minsk. “Não deixarei que ninguém entregue o nosso país, não permitirei isso nem depois de morto”, discursou desafiante o líder bielorrusso diante de milhares de pessoas, principalmente funcionários estatais e trabalhadores que chegaram em comitivas de ônibus e trens até a capital. Segundo o Ministério do Interior, a manifestação reuniu 60.000 pessoas; já segundo a contagem de veículos de comunicação independentes, apenas 4.000.
Lukashenko descartou categoricamente a ideia de convocar novas eleições e defendeu a apuração em que a comissão eleitoral lhe deu 80% dos votos, contra 10% de sua principal adversária, Svetlana Tijanovskaia, que se exilou terça-feira na Lituânia ao sentir que sua família estava sendo ameaçada. Insistindo em seu discurso sobre um suposto complô externo para derrubá-lo, Lukashenko acusou as potências ocidentais de interferir na soberania do país e de concentrar unidades militares ao longo das fronteiras ocidentais da Bielorrússia.
“Os aviões da OTAN [aliança militar liderada pelos EUA] estão a 15 minutos de voo, suas tropas e seus tanques estão às nossas portas. Lituânia, Letônia, Polônia e, lamentavelmente, nossa querida Ucrânia ordenam que repitamos as eleições, mas se lhes dermos ouvidos vamos despencar”, insistiu Lukashenko, acrescentando que uma nova votação significaria a morte “como Estado e como nação” da Bielorrússia. “Não queremos nos tornar um cordão sanitário entre Oriente e Ocidente, não queremos nos tornar o banheiro da Europa”, acrescentou em seu discurso televisionado, enquanto seus partidários o aclamavam usando seu apelido favorito, Batka, o “pai” da nação. A OTAN desmentiu as declarações do líder bielorrusso.
Lukashenko, de 65 anos, que construiu um regime autoritário reprimindo a oposição e os veículos de comunicação e está sob os holofotes por violações dos direitos humanos, enfrenta o maior desafio de seu mais de um quarto de século no poder. Os protestos contra a alegada fraude eleitoral e a violência policial com que foram reprimidas as primeiras manifestações contra o Governo, nas quais morreram pelos menos dois manifestantes, não param de crescer. Foram ampliados com greves em um grande número de empresas e fábricas estatais, que costumam ser as bases de Lukashenko.
Diante do aumento incessante do descontentamento e de perda do apoio das ruas, o líder bielorrusso recorreu no sábado a Putin. Lukashenko disse ao presidente russo que os protestos são “impulsionados e organizados do exterior” e poderiam se espalhar para o país vizinho. E deu a entender que, caso ele caia, Putin poderia ser o próximo. Bateu em duas das teclas que costumam mobilizar o Kremlin: o temor de uma de uma ingerência de potências ocidentais e de uma revolução dentro de seu territór
Menos de 24 horas depois dessa advertência, Lukashenko e Putin voltaram a conversar. Em um comunicado, o Kremlin ressaltou que a Rússia, levando em conta “a pressão exercida [sobre a Bielorrússia] do exterior”, está disposta a oferecer ajuda para “resolver os problemas”, inclusive sob o pacto de segurança coletiva prevista em tratados bilaterais, “caso seja necessário”. O comunicado não mencionou de onde vem a suposta pressão.
As manifestações contra o regime de Lukashenko e a favor de novas eleições entraram neste domingo em seu oitavo dia seguido. São as maiores já realizadas na Bielorrússia. Em Minsk, a 2,5 quilômetros da manifestação convocada pelo Governo em apoio a Lukashenko, dezenas de milhares de pessoas pediram sua renúncia, em uma “marcha da solidariedade” incomum na pequena ex-república soviética de 9,4 milhões de habitantes, na qual até alguns meses atrás poucos se atreviam a criticar o Governo em público.
“As coisas nunca voltarão a ser iguais”, diz Olga Motornova, por telefone, de Minsk. “O país perdeu o medo e isso não tem volta, aconteça o que acontecer”, acrescenta essa engenheira de telecomunicações de 33 anos. As suspeitas e evidências crescentes de manipulação se somam ao descontentamento por anos de repressão, pela estagnação econômica, pela falta de reformas e pela nefasta gestão da pandemia pelo novo coronavírus. Lukashenko, que zombou do vírus e afirmou que a melhor forma de combatê-lo era com vodca, sauna, hóquei e arando a terra com um trator bielorrusso, não decretou medidas de quarentena nem fechou as fronteiras do país. Diante do aumento de casos e da falta de apoio público, os bielorrussos construíram um tecido social que, com base na solidariedade, supriu essas carências. É esse tecido que alimenta e impulsiona agora a sociedade civil contra o regime.
“Continuaremos saindo às ruas até sermos ouvidos. Queremos que ele [Lukashenko] saia”, afirmou Artiom Jodakov durante a manifestação contra o líder bielorrusso em Minsk. Agitando bandeiras brancas com uma faixa vermelha ―que a oposição tomou como símbolo― e vestindo essas mesmas cores, os partidários da oposição gritavam “fora” e “liberdade”. Alguns manifestantes mostravam fotos de parentes que, segundo eles, não puderam participar por estar presos ou se recuperando da prisão. Nos primeiros dias, as autoridades detiveram 7.000 pessoas, e pessoas que foram libertadas falaram da brutalidade policial. Organizações como Anistia Internacional, Human Rights Watch e Comitê de Helsinque da Bielorrússia documentaram casos de maus-tratos e até de tortura.
A indignação com a violência das autoridades contra manifestantes pacíficos alimentou o descontentamento. A ponto de que neste domingo o próprio ministro do Interior, Yuri Karaiev, ter dito ser contra os abusos. “Isso é muito ruim, não deveria acontecer. Investigaremos todas as acusações, mas não agora, e sim quando a situação se acalmar. Já disse que lamento que alguns tenham sido espancados”, afirmou Karaiev na manifestação a favor do Governo.
“Estamos vendo que este ditador não se deterá diante de nada, está disposto até a sacrificar a soberania e a independência de Bielorrússia para manter seu poder”, afirmou Maria Kolesnikova, uma das mulheres do trio oposicionista liderado por Tijanovskaia, que Lukashenko procurou insultar com comentários machistas. O líder bielorrusso já perdeu o apoio de dezenas de milhares de trabalhadores das fábricas, e até jornalistas da TV estatal, um de seus braços de propaganda, mostraram-se dispostos a aderir à mobilização.
O que acontecer na Bielorrússia, que tem uma extensa fronteira com a Rússia, mas também com a Letônia, Lituânia, Polônia e Ucrânia, será decisivo para toda a região. O Kremlin não parece disposto a perder sua influência sobre o pequeno país, que atua há anos como amortecedor entre a Rússia e a OTAN, mas Moscou está analisando agora suas opções. E nenhuma parece totalmente desejável.
Os analistas não estão convencidos de que Putin vá apoiar Lukashenko a qualquer custo e assinalam que uma intervenção militar poderia reviver sentimentos contra os russos na Bielorrússia, onde são minoritários. Nem a oposição a Lukashenko é antirrussa.