Postado às 05h48 | 09 Jun 2020
O escritor Luis Fernando Verissimo Foto: AMANDA PEROBELLI/ESTADÃO – 14/9/2016
Estado
No final dos anos 1960, a seção de gastronomia do jornal gaúcho Zero Hora chamava atenção não apenas pela qualidade das receitas sugeridas, mas, principalmente, pelo estilo talentoso e bem-humorado com que eram escritas. Não eram assinadas, mas logo se descobriu que eram de autoria de Luis Fernando, filho do grande romancista Erico Verissimo. Era o início do hoje consagrado escritor, cronista, cartunista, ficcionista, saxofonista, gourmet e torcedor fanático do Internacional, um dos grandes nomes da literatura brasileira.
Trata-se de uma seleção com mais de 300 crônicas, justamente aquelas que não pereceram com o tempo. “A boa crônica mantém a atualidade não só porque desvela o passado, mas porque é boa literatura; e não raro, em alguns casos, volta a ser atual, mostrando que a história é também cíclica – são as ironias do tempo, diria Verissimo”, observa a editora Daniela Duarte, no prefácio.
Verissimo só começou a escrever aos 32 anos, depois de ter passado por várias escolas de arte e desenho, inacabadas; de ter tentado o comércio “só para reforçar o mau jeito da família”; e de ter passado por uma rápida carreira jornalística, de revisor e colunista de jazz a cronista.
Assuntos nunca faltaram, mas, ao longo do tempo, alguns temas foram mais recorrentes, como observa Daniela: recriações históricas, notadamente as da criação bíblica e as de grandes personagens da história mundial, relacionamentos amorosos, tramas policiais ou sátiras ao gênero, os flagrantes do dia a dia, a mística do futebol, o prazer da comida, a linguagem e as palavras, o posicionamento político e ideológico engajado, as reflexões sobre a condição humana e as hilárias previsões para o futuro. Sobre a antologia, Verissimo respondeu a essas questões.
O livro faz uma retrospectiva de 50 anos de sua produção de crônicas. Assim, é possível dizer que o Brasil sempre foi um prato cheio para um cronista ou houve um tempo específico em que o desafio foi maior?
Eu ainda peguei o fim da censura, quando certos assuntos e até certos nomes eram proibidos de ser citados na imprensa, como o Estadão sabe muito bem. Precisava ter sempre um texto de reserva, sobre o sexo dos anjos, para substituir o eventualmente censurado, ou recorrer a metáforas ou mensagens cifradas para driblar o censor, na esperança de que o leitor entendesse. Havia quem dissesse que a obrigação de escrever na entrelinhas estimulava a criatividade. Mas escrever nas entrelinhas não era um desafio, era uma chateação.
Assuntos do cotidiano, como família, trabalho, amigos, a rápida evolução dos costumes, enfim, são mais atraentes para sua escrita ou falar sobre personalidades (das artes, do esporte, da política) é mais tentador?
A crônica é um gênero literário indefinido, em que cabe tudo, do universo ao nosso umbigo, e a gente aproveita essa liberdade. Mas escrever alguma coisa que preste sobre o cotidiano é difícil. Aquela história que quem canta o seu quintal está cantando o mundo não se sustenta. Mas depende do quintal, claro.
Diálogos invejáveis são um diferencial em seus textos. Para isso, basta ter um bom ouvido ou muita leitura? Ou nada disso?
É difícil escrever diálogos em português. Em inglês, por exemplo, o corriqueiro não soa falso. Alguém já disse que para um diálogo em inglês parecer natural basta acrescentar um “fucking” a cada frase. Mas é verdade que, até há pouco tempo, nos livros do Hemingway, por exemplo, o palavrão era substituído por (“obscenity”). No caso do diálogo em português, o “natural” não funciona. Já se disse que, em português, pronome no lugar certo é elitismo.
Há vários anos, textos falsamente atribuídos a você circulam na internet, o que o torna uma vítima antiga das hoje chamadas fake news. No atual contexto, há alguma possibilidade de fake news serem engraçadas?
Há “fake news” engraçadas, você estranha que o autor verdadeiro não queira aparecer, ou prefira se esconder sob um pseudônimo conhecido. Mas geralmente as “fakes” são ruins. Como não há como evitá-las, o jeito é se resignar e aceitá-las, com o risco de um dia ser processado por calúnia ou difamação.
É difícil fazer humor neste momento em que se diz que o aquecimento global é marxista e a Terra é plana? A competição ficou mais acirrada?
Pois é. Triplicou o volume de coisas que as pessoas estão dispostas a acreditar, começando por filósofos astrólogos e mitos a cavalo. É verdade que as religiões prepararam as pessoas a acreditar no inacreditável.
“O comunismo é como o resfriado”, diz Cerqueira, personagem da crônica A Mancha. “Enquanto não inventarem uma vacina... Eles podem voltar, mas nós também ainda estamos aqui!” Esse rápido diálogo reflete bem o que vivemos hoje?
Se me lembro bem desse texto, quem o diz é um velho reacionário que não tem dúvida, conhecendo o país em que vive, que sua classe prevalecerá, e qualquer alternativa será natimorta.
Na crônica Vi, você aproveita a chegada de seus 80 anos para elencar fatos memoráveis que viu com os próprios olhos, desde um homem pisar na Lua pela primeira vez até “o implante de cabelo (funcionou com Renan Calheiros, ué)”. Agora, que ruma para os 84 anos, o que acrescentaria nessa lista?
A volta da Peste Negra, francamente, me pegou de surpresa. A volta do ioiô também.
Neste mês de junho, são lembrados os 50 anos da conquista do tricampeonato na Copa do México. Foi essa a melhor de todas as seleções brasileiras da história? Se não, qual teria sido?
A seleção de 1982 foi a melhor, na minha opinião. Aquela foi uma grande geração, mas uma geração sem apoteose. Faltou ganhar a Copa.
No texto Recapitulando, você comenta que o Mundial de 1970 ficou como a Copa da ambiguidade – afinal, durante a ditadura militar, era difícil torcer porque era uma forma de colaboracionismo, mas também fácil porque o time era de entusiasmar qualquer um. Como foi esse dualismo?
Fui para a frente da televisão preparado para torcer contra o Brasil da ditadura, da tortura, do Médici, de tudo o que a gente era contra. Uma predisposição que durou exatamente dez minutos, até a primeira escapada do Jairzinho pela direita.
Em um exercício de futurologia, quando se fizer, daqui a 20 anos, um filme sobre o Brasil atual, como será?
Daqui a 20 anos, não existirão mais cinemas nem grandes telas de TV. Cada pessoa terá seu aparelhinho individual, no qual verá filmes sobre o Brasil de agora, e não acreditará.