Postado às 11h23 | 17 Fev 2021
Folha
A demarcação dos limites da liberdade de expressão protegida pela Constituição envolve um exame do potencial destrutivo dos conteúdos transmitidos por aqueles que exercem esse direito, segundo especialistas ouvidos pela Folha ao analisarem recentemente o inquérito das fake news em andamento no STF (Supremo Tribunal Federal).
Para eles, à medida que se passa da intenção de derrubar um argumento ou uma ideia e se vai para o caminho do aniquilamento de instituições e das ofensas para destruir a reputação de pessoas, é ultrapassada a fronteira da conduta legítima e se chega ao campo dos crimes.
As conclusões poderão variar, por exemplo, do direito de criticar decisões do STF de soltar réus, em um exercício legítimo, até a prática de crimes contra a honra e a integridade física dos ministros do Supremo e contra o funcionamento do Poder Judiciário.
Os especialistas foram ouvidos pela Folha antes do caso desta terça-feira (16), no qual o ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), mandou prender em flagrante, na noite desta terça-feira (16), o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ).
Silveira é alvo de dois inquéritos na corte —um apura atos antidemocráticos e o outro, fake news. Moraes é relator de ambos os casos, e a ordem de prisão contra o deputado bolsonarista foi expedida na investigação sobre notícias falsas.
Nesta terça, Silveira publicou na internet um vídeo com ataques a ministros do Supremo. Ao ser preso, voltou às redes sociais: "Polícia Federal na minha casa neste exato momento com ordem de prisão expedida pelo ministro Alexandre de Moraes".
Ainda no ano passado, após ordem do ministro Moraes, a Polícia Federal cumpriu ordens de busca e apreensão contra políticos, blogueiros e empresários bolsonaristas no inquérito das fake news.
À época, a deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP), que é professora da Faculdade de Direito da USP, fez uma série de críticas à medida.
Em uma das postagens ela afirmou que, apesar de não considerar comportamentos corretos "os xingamentos, as ofensas, os ataques" feitos por muitos dos investigados, vê com preocupação "a tendência crescente de equiparar a palavra (falada ou escrita) a atos criminosos".
"Pessoas verbalmente agressivas vêm sendo tratadas como partes de organizações criminosas. Penso que o Direito Penal Mínimo não pode conviver com isso", completou a deputado paulista.
As postagens mencionadas na decisão de Moraes têm conteúdos e tons diferentes.
Algumas trazem ameaçam aos ministros do STF, como a seguinte publicação feita pela deputada federal Carla Zambelli, em março de 2019: "Recado aos Ministros do STF: não brinquem com a LavaJato, ou nós vamos derrubar CADA UM DOS SENHORES".
Outras mensagens trazem críticas de cunho ideológico, como a do deputado federal Luiz Phillipe Orleans e Bragança (PSL-SP): "O ativismo judicial se aplica mais ao próprio STF que a qualquer outro poder. A maioria dos juízes nunca foi juiz, todos da mesma ideologia, não querem se reformar e ignoram seu descrédito".
Ao tratar do tema liberdade de expressão, as leis brasileiras proíbem a censura prévia. Porém o direito de livre manifestação do pensamento traz consigo a responsabilidade criminal pelo teor do que é expressado, segundo o professor de direito penal da USP e presidente do Iasp (Instituto dos Advogados de São Paulo), Renato Silveira.
Segundo Silveira, ataques em redes sociais podem configurar, por exemplo, crimes contra a honra. “Uma pessoa pode ser responsabilizada quando ataca a honra de outra pessoa. Ela pode atacar a honra imputando a essa pessoa crime que não existe." O delito descrito pelo professor da USP no jargão técnico é chamado de calúnia.
Ana Carolina Moreira Santos, advogada criminalista e conselheira da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) em São Paulo explica que, apesar de ser uma garantia constitucional, a liberdade de expressão não é um direito absoluto.
"No direito brasileiro não há nenhum direito absoluto. Ocorre a mesma coisa com a liberdade de expressão, existem outras garantias e, se uma é colocada ao lado da outra, se a garantia da liberdade de expressão está violando outro [direito], como a proteção da honra e da vida privada, isso deve ser analisado caso a caso", afirmou.
Conforme aponta a professora de direito constitucional da PUC-SP Maria Garcia, a Constituição determina que "é livre a expressão da atividade intelectual (...) e de comunicação, independentemente de censura ou licença".
No entanto, segundo ela, a manifestação estará sujeita a punição caso desrespeite, por exemplo, o inciso da Constituição que prevê que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (...)".
De acordo com Rodrigo Nabuco, advogado criminal e conselheiro da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP), caberá ao juiz de uma eventual ação decidir se determinado conteúdo é ou não ofensivo à honra. Para ele, os limites são ultrapassados quando ao invés de críticas à atuação dos ministros, elas passam a constituir ofensas à sua pessoa.
"Ele ali é representante de um poder constituído que tem exatamente a função de julgar. Então quando ele se manifesta nos autos, a pessoa dele não está em jogo. Está em jogo a função dele de magistrado. Ofensas pejorativas a pessoa, ao seu passado, isso não é liberdade de expressão, isso é ofensivo."
Diretor da Faculdade de Direito da USP, Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto diz que é preciso analisar também quando a ofensa é dirigida a uma pessoa especificamente ou chega a atingir a própria instituição da qual faz parte.
“Quando há como vítima um ministro, além da violação subjetiva pode ocorrer uma violação à incolumidade da instituição, o que pode tipificar crime previsto na Lei de Segurança Nacional."
A Lei de Segurança Nacional mencionada por Azevedo Marques foi promulgada em 1983 pelo presidente João Baptista Figueiredo, o último da ditadura militar. Esse texto legal prevê a prática de crimes em casos de atos contra “o regime representativo e democrático”, a “Federação e o Estado de Direito” e “a pessoa dos chefes dos Poderes da União”.
De acordo com a presidente da comissão de direito penal do Iasp, Heidi Rosa Florêncio Neves, os ministros do STF vêm alegando que estão defendendo a instituição e não a eles próprios, mas cada magistrado poderia adotar medidas judiciais individuais para responsabilizar aqueles que os ofendem.
Não há diferença entre as limitações ao direito da liberdade de expressão quando se trata de manifestação a respeito de uma pessoa comum ou de uma autoridade, como explica o jurista Carlos Ari Sundfeld. No entanto, ele pontua que há um problema quando as manifestações atacam os valores da Constituição.
"A manifestação pública pode ser um instrumento, e aí envolverá também uma associação criminosa, de produzir destruição dos nossos valores constitucionais, para armar golpes, incitando o desrespeito a instituições, desmoralizando as instituições com um objetivo por trás que é o de abrir caminho para ruptura institucional."