Postado às 15h05 | 06 Jun 2020
Estado
Gabriel García Márquez escreveu sobre diversas personalidades, como seus escritores preferidos. Aqui, na crônica intitulada Meu Hemingway Pessoal e que consta no livro O Escândalo do Século (a ser lançado pela editora Record), ele relata o breve encontro que teve com o grande autor americano Ernest Hemingway. O texto foi publicado no dia 29 de julho de 1981, no jornal espanhol El País.
Reconheci-o logo, passeando com sua mulher, Mary Welsh, pelo boulevard Saint-Michel, em Paris, num dia da chuvosa primavera de 1957. Caminhava do outro lado da rua em direção ao Jardim de Luxemburgo, e estava vestindo uma calça de vaqueiro muito usada, uma camisa quadriculada e um boné de beisebol. A única coisa que não parecia sua eram os óculos de armação metálica, redondos e minúsculos, que lhe davam um ar de avô prematuro. Fizera 59 anos, e era enorme e demasiado visível, mas não dava a impressão de força brutal que sem dúvida ele teria desejado, porque tinha cadeiras estreitas e as pernas um tanto magras sobre a base. Parecia tão vivo entre as barracas de livros de segunda mão e a torrente juvenil da Sorbonne que era impossível imaginar que lhe faltavam apenas quatro anos para morrer.
Por uma fração de segundo - como sempre me ocorreu - me encontrei dividido entre minhas duas profissões rivais. Não me decidia se o entrevistava ou se apenas atravessava a avenida para expressar minha admiração sem reservas. Para ambos os desígnios, no entanto, havia o mesmo grande inconveniente: eu falava então o mesmo inglês rudimentar que segui falando sempre, e não estava muito seguro de seu espanhol de toureiro. De maneira que não fiz nenhuma das duas coisas, que poderiam ter estragado aquele instante, e sim pus as mãos em forma de buzina, como Tarzan na selva, e gritei de uma calçada para a outra:
- Maeeeestro.
Ernest Hemingway compreendeu que não podia haver outro mestre entre a multidão de estudantes, voltou-se com a mão para cima, e gritou em castelhano com uma voz um tanto pueril:
- Adioooos, amigo.
Foi a única vez que o vi.
Eu era então um jornalista de 28 anos, com um romance publicado e um prêmio literário na Colômbia, mas estava encalhado e sem rumo em Paris. Meus dois mestres maiores eram os dois romancistas norte-americanos que pareciam ter menos coisas em comum. Lera tudo o que eles publicaram até então, mas não como leituras complementares, muito pelo contrário: como duas formas distintas e quase excludentes de conceber a literatura. Um deles era William Faulkner, a quem nunca vi com estes olhos e a quem só posso imaginar como o rancheiro em mangas de camisa que esfregava o braço perto de dois cachorrinhos brancos, na foto célebre feita por Cartier-Bresson. O outro era aquele homem fugaz que acabara de me dar adeus da outra calçada, e me deixara a impressão de que algo ocorrera em minha vida, e que ocorrera para sempre.
Não sei quem disse que nós, romancistas, lemos os romances dos outros só para saber como são escritos. Creio que é isso mesmo. Não nos conformamos com os segredos expostos diante da página, mas voltamos atrás, para decifrar as costuras. De alguma maneira impossível de explicar desarmamos o livro em suas peças essenciais e voltamos a armá-lo quando já conhecemos os mistérios da relojoaria pessoal. Essa tentativa é desencorajadora nos livros de Faulkner, porque não parece ter um sistema orgânico de escrever, e sim que andava às cegas em seu universo bíblico como um tropel de cabras soltas numa loja de vidros. Quando se consegue desmontar uma página sua, tem-se a impressão de que sobram molas e parafusos e que será impossível devolvê-la ao estado original. Hemingway, em compensação, com menos inspiração, menos paixão e menos loucura, mas com um rigor lúcido, deixava os parafusos à vista pelo lado de fora, como nos vagões do trem. Talvez por isso Faulkner seja um escritor que teve muito a ver com minha alma, mas Hemingway é o que mais teve a ver com minha profissão.
Não só por seus livros, mas por seu assombroso conhecimento do aspecto artesanal da ciência de escrever. Na entrevista histórica ao jornalista George Plimpton para a Paris Review ensinou para sempre - contra o conceito romântico da criação - que a segurança econômica e a boa saúde são convenientes para escrever, que uma das dificuldades maiores é a de organizar bem as palavras, que é bom reler os próprios livros quando se torna difícil escrever para recordar que sempre foi difícil, que se pode escrever em qualquer lugar sempre que não haja visitas nem telefone, e que não é certo que o jornalismo acabe com o escritor, como tanto se disse, e sim o contrário, desde que se o abandone a tempo.
- Uma vez que escrever se converteu no vício principal e no maior prazer - disse - só a morte pode acabar com ele.
Contudo, sua lição foi a descoberta de que o trabalho de cada dia só deve ser interrompido quando já se sabe como se vai começar no dia seguinte. Não creio que se tenha dado jamais um conselho mais útil para escrever. É, sem mais nem menos, o remédio absoluto contra o fantasma mais temido dos escritores: a agonia matinal diante da página em branco.
A obra de Hemingway demonstra que seu fôlego era genial, mas de curta duração. E é compreensível. Uma tensão interior como a sua, submetida a um domínio técnico tão severo, é insustentável no âmbito vasto e arriscado de um romance. Era uma condição pessoal, e seu erro foi ter tentado rebaixar seus limites esplêndidos. É por isso que o supérfluo se nota mais nele do que em outros escritores. Seus romances parecem contos sem medida nos quais sobram muitas coisas. Em compensação, o melhor de seus contos é a impressão de que algo ficou faltando, e é isso precisamente o que lhes confere mistério e beleza. Jorge Luis Borges, que é um dos maiores escritores de nosso tempo, tem os mesmos limites, mas teve a inteligência de não os rebaixar.
Um único tiro de Francis Macomber no leão ensina tanto como uma lição de caça, mas também como resumo da ciência de escrever. Em algum conto escreveu que um touro, depois de passar roçando pelo peito do toureiro, revolveu-se “como um gato dando a volta numa esquina”. Acredito, com toda a humildade, que essa observação é uma das tolices geniais que só são possíveis nos escritores mais lúcidos. A obra de Hemingway está cheia desses achados simples e deslumbrantes, que demonstram até que ponto se cingiu à sua própria definição de que a escrita literária - como o iceberg - só tem validade se está apoiada sob a água por sete oitavos de seu volume.
Por causa dessa consciência técnica, sem dúvida Hemingway não entrará para a história por nenhum de seus romances, mas por seus contos mais rigorosos. Falando de Por quem os sinos dobram, ele mesmo disse que não tinha um plano prévio para compor o livro, mas inventava à medida que ia escrevendo. Não precisava dizer: nota-se. Em compensação, seus contos de inspiração instantânea são invulneráveis. Como aqueles três que escreveu na tarde de 16 de maio numa pensão de Madri, quando uma nevada cancelou uma tourada da feira de San Isidro. Esses contos - segundo ele próprio contou a George Plimpton - são: Os assassinos, Dez índios e Hoje é sexta-feira, e os três são magistrais.
Dentro dessa linha, para o meu gosto, o conto em que melhor se resumem suas virtudes é um dos mais curtos: Gato na chuva. No entanto, ainda que pareça uma brincadeira do destino, parece-me que seu livro mais bonito e humano é o que apresenta mais problema de realização: Do outro lado do rio, entre as árvores. Como ele próprio revelou, é algo que começou como conto e se extraviou pelos mangues do romance. É difícil entender tantas rachaduras estruturais e tantos erros de mecânica literária num técnico tão sábio, e diálogos tão artificiais e até tão artificiosos num dos mais brilhantes ourives de diálogos da história das letras. Ao ser publicado, em 1950, a crítica foi feroz. Porque não foi certeira. Hemingway se sentiu ferido onde mais doía, e se defendeu em Havana com um telegrama passional que não pareceu digno de um autor de sua estatura. Não só era seu melhor romance, mas também o mais pessoal, pois fora escrito no princípio de um outono incerto, com a saudade irreparável dos anos vividos e a premonição nostálgica dos poucos anos que restam por viver. Em nenhum de seus livros deu tanto de si mesmo nem conseguiu plasmar com tanta beleza e tanta ternura o sentimento essencial de sua obra e vida: a inutilidade da vitória. A morte de seu protagonista, de aparência tão tranquila e natural, era a prefiguração cifrada do próprio suicídio.
Quando se convive por tanto tempo com a obra de um escritor muito apreciado, termina-se irremediavelmente por misturar sua ficção com a realidade. Passei muitas horas de muitos dias lendo naquele café da Place de Saint-Michel que ele considerava bom para escrever, porque lhe parecia simpático, quente, limpo e amável, e sempre esperei encontrar outra vez a moça que ele viu entrar numa tarde de vento gelado, que era bela e diáfana, com o cabelo cortado em diagonal, como uma asa de corvo.
“Você é minha e Paris é minha”, escreveu para ela, com esse inexorável poder de apropriação que tem sua literatura. Tudo o que escreveu, todo instante que foi seu, continuam a lhe pertencer para sempre. Não posso passar pelo número 112 da rua do Odéon, em Paris, sem imaginá-lo conversando com Sylvia Beach numa livraria que já não é a mesma, matando tempo até as seis horas, quando talvez chegasse James Joyce. Nas pradarias do Quênia, só de olhar uma vez, fez-se dono de seus búfalos e seus leões, e dos segredos mais intrincados da arte de caçar. Fez-se dono de toureiros e pugilistas, de artistas e pistoleiros que só existiram por um instante, enquanto foram seus. Itália, Espanha, Cuba, meio mundo está cheio dos lugares de que se apropriou só por mencioná-los. Em Cojímar, um povoado perto de Havana onde vivia o pescador solitário de O velho e o mar, há uma capelinha comemorativa de sua façanha, com um busto de Hemingway pintado com verniz dourado. Em Finca Vigía, seu refúgio cubano onde viveu até pouco antes de morrer, a casa está intacta entre as árvores sombrias, com seus livros desiguais, seus troféus de caça, seu atril para escrever, seus enormes sapatos de morto, as incontáveis bugigangas da vida e do mundo inteiro que foram suas até a morte, e continuam a viver sem ele com a alma que lhes infundiu pela única magia de seu domínio. Há alguns anos entrei no automóvel de Fidel Castro - que é um obstinado leitor de literatura - e vi no banco um livrinho encadernado em couro vermelho.
- É o mestre Hemingway - disse-me.
Na realidade, Hemingway continua a estar onde menos se imagina - vinte anos depois de morto -, tão persistente e ao mesmo tempo tão fugaz como naquela manhã, que talvez fosse de maio, em que me disse adeus, amigo, da outra calçada do boulevard Saint-Michel.