Diário de Notícias, Portugal
Com olheiras, a boca contraída para disfarçar emoção e levemente mais despenteado do que de costume, o ministro da Saúde do Brasil chegou na quinta-feira à mesma sala de onde, desde meio de março, se reunia diariamente com os brasileiros para dar as últimas notícias do combate ao novo coronavírus no país. Após ouvir sonoros aplausos dos funcionários do Ministério da Saúde que o aguardavam, Luiz Henrique Mandetta despediu-se.
Na sua última conferência de imprensa no cargo declarou "a ciência é a luz".
Noutro ponto do Palácio do Planalto surgia à mesma hora Jair Bolsonaro, já com Nelson Teich, o substituto de Mandetta, ao lado. E, subitamente, irrompe Brasil afora um "panelaço" - não às 20.30, o horário em que se vem repetindo desde há semanas (já lhe chamam até "panelaço o'clock"), mas a meio da tarde.
A prova de que o povo, ou pelo menos parte dele, está com o ex-ministro Mandetta, o médico ortopedista de 55 anos do Mato Grosso do Sul, estado na região centro-oeste do Brasil, que não recuou da recomendação de manter o isolamento social, apesar da pressão de Bolsonaro e dos bolsonaristas das redes sociais.
Não são apenas os "panelaços" que o dizem. São as pesquisas de opinião: segundo o Instituto Datafolha, que ouviu 1511 pessoas entre 1 e 3 de abril, 76% apoiam a condução do combate à pandemia pelo Ministério da Saúde, um salto de 21 pontos em relação aos 55% registados a 20 de março, data do último levantamento.
Já a imagem do presidente Bolsonaro desgastou-se durante a pandemia: 39% dos entrevistados afirmaram reprovar a sua atitude - no dia 20, eram 33%. Segundo estudo simultâneo da XP Investimento, 42% dos entrevistados avaliam como má ou péssima a atuação do presidente, contra os 36% que tinham a mesma opinião no início de março. A consultoria Atlas Político, por sua vez, indicou uma rejeição a Bolsonaro de 60% a 3 de abril face aos 57% de 26 de março.
Com Bolsonaro em queda e Mandetta em alta, num país (e numa região do globo) mais dado a eleger heróis solitários do que projetos coletivos para a presidência, a pergunta impõe-se: morreu um ministro mas nasceu um candidato?
Professor da Fundação Armando Álvares Penteado e da Faculdade Getúlio Vargas, o cientista político Vinícius Vieira lembra ao DN que "primeiro, especulou-se, que a abordagem dele visava ter a sua imagem projetada para disputar o governo do Mato Grosso do Sul, o seu estado". "Mas hoje", afirma, "pode considerar-se, sim, presidenciável."
"O ano de 2022 ainda é distante, até lá temos de vencer o covid-19, passar por toda a turbulência do governo Bolsonaro, que ninguém sabe ao certo se chega ao fim, mas é indiscutível que ele ganhou destaque nos media nacionais, nomeadamente na TV Globo, e tem boa capacidade de comunicação."
"Além disso", prossegue, "pode beneficiar-se de João Doria, governador do estado de São Paulo que disputa a mesma área política, poder vir a ser prejudicado pela inevitável crise económica e de o apresentador Luciano Huck, além de continuar hesitante, ter uma vida, digamos, desregrada, até com uso de drogas, o que é prejudicial num Brasil hoje, queiramos ou não, muito conservador".
Acresce que parte do país, depois da polarização de 2018, reclama por uma terceira via, entre a extrema-direita representada por Bolsonaro e a esquerda liderada pelo PT, de Lula da Silva.
"Não sendo um herói mas sabendo aproveitar a ocasião, Mandetta pode ser, em suma, um Dom Sebastião vindo do Brasil profundo", conclui Vieira, usando metáfora lusitana.
Mas e o que de tão especial tem um político que até há meia dúzia de semanas era desconhecido, exceção feita aos eleitores sul-matogrossenses, de quase todos os brasileiros? "Ele conseguiu uma combinação rara nos gestores públicos: a mistura perfeita entre política e técnica", diz Fred Perillo, estratega digital, consultor e palestrante na área do marketing político, ao DN.
"A maioria absoluta dos ministros de Estado - e secretários de Saúde dos estados - ou são técnicos sem traquejo político ou são políticos sem transmitir segurança técnica. Mandetta conseguiu conciliar as duas coisas. Um dos seus grandes trunfos foi a sua experiência como deputado federal, onde ele conquistou habilidade e networking político. Isso garantiu-lhe grande adesão no meio político, já que, experiente, ele tratava todos muito bem."
"Já a conquista da opinião pública consolidou-se com a estratégia das conferências de imprensa, onde ele encenava ao mesmo tempo o papel do político tradicional (fala pausada, discurso humanizado, linguagem acessível a todas as classes) com o perfil técnico simbolizado pelo colete que usava. Esta, para mim, é a grande receita do sucesso de Mandetta. Que agora se habilita a voos mais altos", conclui Perillo.
Os voos podem ser altos ao ponto de o seu partido, o DEM, o ter aconselhado a recusar apelos para ocupar a posição de secretário de Saúde no governo de São Paulo, liderado por Doria (do PSDB, também centro-direita), que se tornou adversário político de Bolsonaro, e de Goiás, onde governa o seu colega do DEM e amigo pessoal Ronaldo Caiado. O partido, segundo a coluna Painel do jornal Folha de S. Paulo, reserva-lhe "um papel nacional".
Um salto e tanto para o secretário da Saúde de Campo Grande, a capital de Mato Grosso do Sul, entre 2005 e 2010, que responde a inquérito por fraude em licitação, tráfico de influência e saco azul na criação de um sistema de prontuários eletrónicos.
Esse e outros pontos baixos da sua carreira, desvalorizados por Bolsonaro na hora do convite para o Ministério da Saúde, têm sido agora replicados pelas redes sociais pró-governamentais lideradas pelos filhos do presidente.
A hashtag #MandettaGenocida ficou entre as mais citadas do Twitter a meio do duelo entre os dois na semana passada. Os bolsonaristas acreditavam que Mandetta colocava vidas em risco por não editar um protocolo de hidroxicloroquina para tratamento do novo coronavírus no Brasil - uma vez que o agora ex-ministro alegava falta de base científica e o presidente é entusiasta do remédio, mesmo sem pesquisas conclusivas a respeito.
A legitimidade de Mandetta para enfrentar a pandemia, entretanto, era posta em causa por ele ser especializado em ortopedia. E em grupos de WhatsApp, o ministro era mesmo acusado de estar ao serviço da imprensa e da esquerda, apesar de pertencer a um dos partidos mais à direita do parlamento, antes da chegada do furacão de extrema-direita ao centro do debate por altura do impeachment de Dilma Rousseff.
O DEM, partido que faz parte da Internacional Democrata Centrista, grupo de partidos democratas-cristãos espalhados pelo mundo e que inclui o português PSD, é descendente direto do ARENA, partido que dava sustento político à ditadura militar.
"Em democracia, concorreu apenas com candidato próprio na primeira eleição, em 1989, o Aureliano Chaves, que fora vice-presidente do general Figueiredo, último
Apoiaria depois o governo do vencedor Collor de Mello antes de em 1994 nomear Marco Maciel como candidato a vice-presidente de Fernando Henrique Cardoso (FHC), do PSDB. Com o triunfo de FHC, o partido esteve no poder de 1995 a 2003 para, nos quatro governos do PT que se lhe seguiram, passar à oposição.
Favorável em peso ao impeachment de Dilma - vem circulando nas redes sociais fotografia do então deputado Mandetta com um cartaz a dizer "Tchau querida", no intuito de demover a esquerda de o apoiar incondicionalmente no braço-de-ferro com Bolsonaro - o DEM teve dois ministros no governo de Michel Temer.
E, apesar de nas eleições de 2018 ter estado na primeira volta ao lado de Geraldo Alckmin, candidato do aliado tradicional, o PSDB, acabou por entrar no governo de Jair Bolsonaro - no gabinete inicial, somava tantos ministros, três, como o próprio PSL, pelo qual Bolsonaro se candidatou.
Além de Mandetta na Saúde, ainda conta com Tereza Cristina, na Agricultura, e Onyx Lorenzoni, que caiu da Casa Civil e foi parar no Ministério da Cidadania.
Lorenzoni é, entretanto, um dos raros barões do DEM contra Mandetta na crise com Bolsonaro. Outros líderes do partido, como a dupla que comanda o Congresso, Davi Alcolumbre, no Senado, e Rodrigo Maia, na Câmara dos Deputados, tem estado indefetível ao lado do hoje ex-ministro.
O presidente nacional do partido desde 2018, Antônio Carlos Magalhães Neto, conhecido por ACM Neto, também vem sendo fiel a Mandetta na condução da luta contra o covid-19 em Salvador, cidade de que é prefeito.
E o amigo pessoal Ronaldo Caiado, governador do Goiás, é um dos mentores do eventual salto do ministro para a condição de candidato ao Planalto. Foi ele quem, na guerra da pandemia, mais encorajou Mandetta, a enfrentar Bolsonaro, o homem que, quem sabe, pode vir a ser em 2022 o seu antecessor.