Postado às 04h48 | 26 Out 2020
Filipe Santos Costa
Jornalista português
Faltam 10 dias para as eleições presidenciais norte-americanas e, no meio de uma enorme incerteza, há duas afirmações que se podem fazer com segurança:
Nesta altura do campeonato, só um cataclismo evitará a vitória de Joe Biden no voto direto – não há uma única sondagem que coloque Trump à frente no total das intenções de voto, com a vantagem de Biden a oscilar, nas sondagens nacionais publicadas esta semana, entre os 3 e os 18 pontos percentuais.Nunca um challenger teve tanta vantagem sobre o presidente em funções tão perto das eleições. Os agregadores de sondagens dão todos uma margem confortável ao antigo vice-presidente. O RealClearPolitics, que faz a média das sondagens nacionais nos EUA, coloca Biden quase oito pontos à frente de Trump.
A margem é maior no FiveThirtyEight, que pondera as sondagens de acordo com a sua qualidade (nomeadamente, dimensão da amostra, método e maior ou menor inclinação a favor dos candidatos) e adiciona outros fatores de análise – ontem eram 9,7 pontos de vantagem.
Já a média das sondagens feita pelo New York Times dá nove pontos de vantagem a Joe Biden, e o mesmo cálculo feito pela The Economist aponta para 8,2 pontos.
Em termos de probabilidades, a revista The Economist tem feito um interessante trabalho de forecasting, que ontem dava ao candidato democrata 92% de hipóteses de vencer, o melhor resultado para Biden desde o início da corrida.
O cálculo sobre probabilidade de vitória feito pelo FiveThirtyEight dá hipóteses um pouco mais moderadas para Biden (vence em 82% dos cenários estudados), mas também neste caso as possibilidades do ex-vice-presidente são agora as mais altas desde o início da candidatura (o mesmo site dizia em 2016 que Hillary Clinton tinha 72% de hipóteses de vencer).
É bom notar que há uma enorme estabilidade desde há muitos meses nas posições relativas dos dois candidatos, com oscilações que não mudam o essencial: a vantagem de Biden, tanto a nível nacional como nos principais swing states.
O frente-a-frente desta semana não parece ter mudado grande coisa no panorama geral – Trump precisava de um confronto capaz de virar o jogo, e nada indica que tenha chegado sequer perto disso, e Biden não cometeu erros. Mais do que isso, as três sondagens feitas após o debate dão a vitória a Biden.
É sintomático que os comentadores favoráveis a Biden tenham olhado para o debate num registo de alívio – considerando que Biden venceu ou que tudo ficou na mesma -, e os do lado de Trump se dividam: nos comentários da Fox News, o canal trumpista por excelência, muitos disseram que o presidente venceu, mas também há quem ache que Trump perdeu a última oportunidade e quem pense que ganhou mas isso não fará diferença.
Mas o voto popular, já se sabe, é só uma parte da história, e nem é a mais importante, como ficou evidente há quatro anos. A questão decisiva é conseguir 270 votos no Colégio Eleitoral – e isso Donald Trump ainda pode conseguir, apesar da desvantagem nas sondagens. Também estava em 2016, e conhecemos o final dessa história. É certo que 2020 não é 2016. Mas, sim, Trump pode vencer outra vez. É um caminho estreito e pouco provável, mas está lá.
Dos 50 Estados norte-americanos, há uma dezena onde se vai decidir o futuro dos EUA. São os battleground states(campos de batalha) ou swing states (Estados oscilantes). Vários deles, onde Trump venceu de forma surpreendente em 2016, são os mesmos que este ano lhe poderão ditar a derrota. Enumero abaixo os principais campos de batalha, pela ordem decrescente de peso no Colégio Eleitoral, e referindo as médias agregadas das sondagens em cada um dos Estados, de acordo com as contas do FiveThirtyEight:
Flórida e Pensilvânia serão, provavelmente, os Estados mais determinantes para o desfecho desta eleição. Quanto ao Texas, seria a maior surpresa da noite se caísse para o lado de Biden. Trata-se de um bastião conservador, que conseguiu não dar qualquer vitória nem a Bill Clinton nem a Barack Obama nas eleições que estes venceram (a última vez que um democrata venceu no Texas foi Jimmy Carter, em 1976).
Quase todos os Estados competitivos estão a pender para o lado de Biden, nalguns casos com margens confortáveis, como nos casos da Pensilvânia, Michigan e Wisconsin. Ou seja, basta que Biden segure todos os estados que Hillary Clinton conquistou em 2016, e lhes acrescente estes três, onde tem grande vantagem nas sondagens, para assegurar a maioria dos votos no Colégio Eleitoral. Nem teria de ganhar nos gigantes Texas e Flórida, nem nos ultra-disputados Ohio e Iowa, nem em improváveis Estados sulistas como Geórgia e Carolina do Norte.
“Nem teria de”, mas apesar disso as sondagens dizem que Biden tem boas hipóteses de… O Politico faz aqui um bom resumo da vantagem de Biden nalguns swing states.
A última atualização do “caminho para a vitória” feito pelo FiveThirtyEight coloca como bónus para Biden (ou seja, já para além dos 270 votos necessários no Colégio Eleitoral) Estados como a Flórida, o Arizona e a Carolina do Norte. E presume que Geórgia, Iowa, Ohio e Texas se mantenham na trincheira de Trump.
Este ano, para além da habitual projeção das intenções de voto em resultados, o New York Times está a fazer dois exercícios interessantes:
Em todos os cenários Biden consegue mais de 300 votos no Colégio Eleitoral.
Para Trump vencer, o caminho é mais estreito e sinuoso. Passa, antes de mais, por garantir o Texas. E precisa muito de voltar a vencer na Flórida. Resumindo: Trump terá de repetir a vitória nos Estados onde triunfou há quatro anos (nalguns casos, por uma unha negra) podendo até perder um ou dois – poderia deixar fugir a Pensilvânia e o Michigan ou o Wisconsin, por exemplo, mas não os três em conjunto.
Em 2016 Trump conquistou 306 votos no Colégio Eleitoral, ou seja, tem uma folga de 36 votos sobre a fasquia dos 270. Há várias combinações possíveis de perdas que fiquem dentro dessa margem, e no quartel-general dos republicanos fazem-se as contas todas. No de Biden também. E há boas e más notícias.
Nessas contas entram muitos dados. Por exemplo, onde investir os milhões de dólares de cada campanha para propaganda eleitoral. Uma coisa é certa: se as mãos largas dos investidores, grandes e pequenos, forem um indício sobre quem irá ganhar, Biden tem aí mais um dado auspicioso.
Pelos dados desta semana, Biden terminou setembro com 180 milhões de dólares à disposição, enquanto Trump conta com três vezes menos: apenas 63 milhões. A irritação do atual presidente é tal que puxou o assunto a despropósito no debate desta semana, para dizer que não tem mais dinheiro porque não quer.
Mas não são só boas notícias para os democratas. Nas últimas semanas aumentou bastante o número de eleitores inscritos como republicanos em alguns swing states, sobretudo brancos sem formação universitária nos Estados da Pensilvânia, Wisconsin e Michigan.
Na Pensilvânia, são mais os novos eleitores registados como republicanos do que como democratas. Está a acontecer o mesmo na Flórida, onde os republicanos conseguiram reduzir a tradicional desvantagem em relação aos democratas. A razão é simples: a campanha de Biden deu ordem para suspender ações de recenseamento porta-a-porta por causa da covid; enquanto isso, os apoiantes de Trump aumentaram o esforço de contacto direto.
O facto de alguém se recensear como republicano (ou democrata) não significa que vote nesse candidato, mas é um bom indício. Por outro lado, ter vantagem nos eleitores registados num certo Estado não equivale a vencer – há quatro anos, Clinton perdeu a Flórida apesar de haver bastantes mais democratas registados. Mas, se assim foi em 2016, este ano as razões de preocupação são ainda maiores para os democratas… Nunca a diferença entre eleitores registados por um e outro partido foi tão estreita na Flórida.
A Flórida é central para as ambições de Trump. Trata-se de um Estado muito complexo, com um norte conservador, e um sul (com o pólo em Miami) mais hispânico, o que costumava ser bom para os democratas. Mas este ano as comunidades cubana e venezuelana, mais conservadoras, estão a dar boas perspetivas a Trump, que cola o rótulo de “socialismo” e “comunismo” à dupla Biden/Harris. O outro grande grupo demográfico do Estado são os idosos e reformados que se fixam no centro da Flórida (à volta de Orlando) atraídos pelo sol e calor – costumam pender para os republicanos, mas a forma como Trump lidou com a ameaça da pandemia pode ter inoculado muitos potenciais eleitores.
Uma sondagem da CNN divulgada esta semana dava fôlego aos republicanos na Flórida e na Pensilvânia. Em ambas Biden está à frente, mas o grau de entusiasmo com que cada lado encara o seu candidato é muito contrastante. Na Florida, 58% dos apoiantes de Trump dizem-se muito entusiasmados por ser ele o seu candidato; do lado democrata, só 49% revela o mesmo estado de espírito – ou seja, Trump motiva muito mais a sua base do que Biden, o que pode refletir-se na determinação para votar. Em vários Estados o cenário repete-se.
Há mais uma razão por que a Flórida será central no dia 3 de novembro. Em rigor, na noite de 3 de novembro. Swing statescomo Pensilvânia, Michigan e Wisconsin não deverão ter os resultados fechados na noite eleitoral, pois só começarão a contar os votos por correspondência no dia das eleições, e continuarão a contar os que cheguem nos dias posteriores. Na Flórida, esse processo começa antes das eleições e é expectável que existam resultados robustos e globais (voto presencial e por correio) logo nessa noite. Uma vitória na Flórida na noite eleitoral, para qualquer lado, pode condicionar toda a narrativa.
Há poucos dias, o diretor de campanha de Biden avisou as tropas que Trump “ainda pode ganhar”. “Todas as indicações que temos mostram que as coisas serão à unha”, escreveu Jen O’Malley Dillon. “A verdade é que esta corrida está muito mais disputada do que poderíamos pensar vendo os comentários no Twitter ou na televisão. Nos principais battleground states onde estas eleições serão decididas, continuamos lado a lado com Donald Trump”.
Não é bem assim, mas os democratas não se esquecem do que se passou em 2016. O New York Times escrevia esta semana sobre a forma estranha como os democratas têm olhado para a vantagem nas sondagens: com cautela e receio.
Segundo um estudo da Associação Americana de Psicologia, esta eleição está a deixar os EUA à beira de um ataque de nervos: 68% dos inquiridos dizem que a votação de 3 de novembro é uma “fonte considerável de stress”. Há quatro anos, num inquérito semelhante, só 52% deram essa resposta. Os mais nervosos são os democratas (72%), mas 64% dos republicanos também dizem que as eleições estão a deixá-los stressados. Os negros são o grupo demográfico para quem a preocupação com as eleições mais cresceu entre as anteriores presidenciais e as atuais (subida de 46% para 71%).
54 milhões já votaram
Mais de 54 milhões de americanos já votaram, segundo os dados do projeto apartidário US Election. Ou seja, já foram depositados quase 40% do total de votos de 2016. Há quatro anos votaram 137 milhões de pessoas, mas o responsável pelo US Election Project prevê que este ano poderão ser contados à volta de 150 milhões de votos. Ou seja, 65% dos eleitores inscritos, o que seria um recorde desde 1908. Estas podem ser as presidenciais americanas com mais afluência às urnas em mais de um século, escreve o The Guardian.
A esmagadora maioria dos votos já depositados (quase 38 milhões) chegou por correio; outros 16 milhões são voto presencial antecipado. Metade desses votos antecipados são de eleitores registados como democratas; só um quarto é de republicanos e o outro quarto é de independentes.
Mais de um milhão já votaram nos battleground states de Wisconsin e Pensilvânia, e quase dois milhões no Michigan e Ohio. Mas os que mais impressionam entre os Estados mais competitivos são a Flórida (onde já há quase 5 milhões de votos) e o Texas, onde mais de 6 milhões já votaram. Para se perceber melhor o que isto significa: há quatro anos votaram quase 9 milhões de texanos – este ano já votaram 71% desse total.
São boas notícias para Biden? Sim, mas… Há muita gente a tentar ler nas folhas de chá, mas não é fácil ter certezas sem os votos contados. Sabe-se que metade de todos votos antecipados são de eleitores registados como democratas, o que permite presumir que são votos em Biden – e não mudam aconteça o que acontecer até dia 3. Os estudos de opinião também dizem que os eleitores antecipados são os que têm mais preocupações com o coronavírus, ou seja, nesse aspecto estão mais próximos de Biden do que de Trump. Mais: segundo uma sondagem da CNN, divulgada na 4a feira, na Flórida 71% dos inquiridos que já votaram fizeram-no por Biden, e só 27% votaram em Trump. Outra sondagem, na Pensilvânia, dá resultados parecidos.
Tudo isto indica que os votos já depositados dão uma vantagem interessante ao ex-vice-presidente (era essa a leitura que o Politico fazia ontem, com base na análise de um think tank financiado por Michael Bloomberg).
Agora o “mas”: a maioria desses votos são por correspondência, e esses são os boletins que mais facilmente serão contestados na contagem final. Trump tem tudo preparado para alegar que há fraude nesses votos, e exigir que não sejam contados os que cheguem depois do dia das eleições, mesmo que tenham sido depositados antes (e tenham o selo respetivo). E serão também esses os votos mais passíveis de alegações de irregularidades…
Qualquer que seja o resultado das eleições, uma certeza já existe: esta será a corrida presidencial norte-americana com mais processos nos tribunais. De ambos os lados há exércitos de advogados prontos para contestar resultados, reclamar recontagens, argumentar pela inadmissibilidade destes ou daqueles votos, e exigir que pare a contagem de sufrágios que cheguem por correio depois do dia das eleições, mesmo que o carimbo seja anterior.
Há uma tradição de litigação nas eleições americanas, e nunca ela foi mais visível do que em 2000, quando a disputa sobre uns milhares de votos na Flórida deu a George W. Bush a vitória sobre Al Gore, decidida no Supremo Tribunal. Mas nas presidenciais de 2016 houve um total de 337 processos em tribunal. O guião é tradicional: os democratas colocam processos para facilitar o voto; os republicanos contestam sempre que há regras mais flexíveis.
Em 2020, com a pandemia, temos litigação em esteróides. Muitos Estados flexibilizaram prazos e normas, de forma a que mais gente possa votar sem ter de ir às mesas de voto no dia 3, evitando aglomerações que podem fazer disparar os contágios por covid-19. Nos 50 Estados, não houve uma única norma que tenha sido flexibilizada que não fosse contestada pelos republicanos. E pelos democratas no sentido oposto.
Até ontem, havia 414 processos judiciais relacionadas com a pandemia – repito: estes são apenas os casos relacionados com a covid-19, listados aqui. Há muitas outras dezenas de processos por outras razões. Como explica este artigo da Time, o padrão repete-se: a maioria das queixas são para:
Tem havido vitórias e derrotas para os dois lados. E estamos só no início. Se o vencedor de 3 de novembro tiver uma folga confortável, e se nos swing states houver margens convincentes, diminui o risco de litigância. Pelo contrário, se o vencedor depender de dois ou três Estados com resultados muito aproximados, brace for impact: A batalha será voto a voto.
No limite, como em 2000, pode ser o Supremo Tribunal a decidir quem ganha – e nessa altura, a vantagem de Trump nessa instituição será sólida, pois a nova juíza indicada pelo presidente, Amy Conney Barrett, deverá ser confirmada já nesta segunda-feira. (Também pode ser a Câmara dos Representantes a tomar essa decisão, num cenário mais extremo, sobre o qual escrevi aqui – em ambos os casos, Trump pode ganhar mesmo perdendo).
Há muitos mais pontos de interrogação sobre o que se poderá passar nos dias que faltam até à eleição, sendo certo que Biden medirá cada passo e Trump terá a tentação de correr maiores riscos.
Numa campanha republicana onde há cada vez mais facas a serem afiadas e dedos apontados, ainda há a esperança de que Trump repita uma façanha de 2016: conter-se nos últimos dias de campanha e seguir um guião. Fê-lo no segundo debate, para alívio dos estrategas republicanos.
Os republicanos têm outra esperança de que 2016 se repita: que as autoridades abram uma investigação ao adversário de Trump. A Casa Branca está a pressionar para que sejam investigadas suspeitas de que Biden terá recebido dinheiro ilegal da Ucrânia, através do seu filho Hunter. Que Trump quer apanhar Biden com histórias da Ucrânia, não é novidade – pressionou o presidente ucraniano para abrir uma investigação aos Biden, o que acabou por motivar as acusações do impeachment contra o presidente dos EUA.
Agora essa suspeita voltou, e ficou conhecida como o “caso do computador do inferno” (laptop from hell). É um conjunto de alegações feitas a partir de documentos supostamente descobertos no computador de Hunter Biden, e divulgadas esta semana por Rudolph Giuliani, o advogado de Trump, que andou meses no Leste da Europa à caça de casos contra Biden.
Pode ler aqui a história, que já circulava no submundo das redes sociais da extrema-direita, e tem mais buracos do que um queijo suíço. Anne Applebaum, que sabe meia dúzia de coisas sobre como estas conspirações são engendradas na esfera russa, escreve um texto na Atlantic em que vai ao essencial: “Não é suposto perceber-se os rumores sobre Biden”, pois para “levantar dúvidas sobre o candidato democrata, as calúnias lançadas pelos media de direita nem precisam de fazer sentido”.
Nenhum grande órgão de comunicação social aceitou publicar a história (nem a Fox News), que acabou como manchete do tabloide sensacionalista New York Post. Mas Trump conseguiu levar o caso ao debate com Biden, obrigando-o a desmentir todas as alegações – e, nesse momento, tornou o caso mainstream.
Este episódio leva-nos a uma última semelhança com 2016 que pode favorecer Trump: a interferência russa. Esta semana, as autoridades norte-americanas confirmaram que hackers russos e iranianos tiveram acesso à lista dos eleitores inscritos para estas eleições. A grande ameaça informática sobre as eleições continua a vir da Rússia, garantem os analistas da CIA num relatório recente: É “muito provável” que Putin aprove e dirija operações de interferência nas eleições dos EUA, visando facilitar a reeleição de Trump.
Muita coisa mudou em relação a 2016. Mas também há coisas que simplesmente não mudam. Como dizia a personagem de Robert de Niro em O Irlandês, “it’s what it is”.