Postado às 04h26 | 14 Set 2020
Estado
Segundo o procurador-geral da República, Augusto Aras, a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba mantém um banco de dados próprio com informações de 38 mil pessoas, sem efetivo controle da Corregedoria do Ministério Público Federal (MPF). Tal revelação trouxe à tona a questão dos poderes de investigação do Ministério Público. Aparentemente pacificado depois de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), o tema ainda suscita muitas dúvidas sobre sua legalidade e os limites do exercício desse poder. Por mais que a investigação presidida pelo Ministério Público tenha se tornado habitual, ainda está longe de ser uma prática em plena conformidade com os direitos e garantias próprios de um regime democrático.
Em 2015, depois de longas discussões e por um placar de 7 a 4, o STF entendeu que o Ministério Público pode conduzir investigações criminais. Havia bons argumentos contrários à tese vencedora, especialmente o de que a Constituição não atribuiu tal competência ao Ministério Público. Prevaleceu, no entanto, a interpretação de que os amplos poderes conferidos aos promotores e procuradores incluiriam a condução de investigações.
De todo modo, o Supremo fixou uma inequívoca condição para esse poder investigatório. O Ministério Público poderia investigar desde que “respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa investigada pelo Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais de que se acham investidos, em nosso País, os advogados”, disse o Supremo.
A menção a esse ponto poderia parecer supérflua. Afinal, o STF lembrava ao Ministério Público que ele deve respeitar a lei e os direitos dos cidadãos em suas investigações. No entanto, longe de ser banal, esse ponto tem se mostrado problemático. Basta ver que a Lava Jato em Curitiba tem informações sobre 38 mil pessoas e, como disse Augusto Aras, “ninguém sabe como (esses nomes) foram escolhidos, quais foram os critérios”.
O Ministério Público precisa cumprir a lei e respeitar os direitos de todos os cidadãos. Não basta alegar, por exemplo, que a concessão de amplos poderes investigatórios ao Ministério Público é uma tendência mundial. Há uma Constituição a ser respeitada. Num Estado Democrático de Direito, o poder de polícia – de investigação – deve estar submetido ao crivo da legalidade.
Nas investigações realizadas pela polícia, o Estado realiza esse controle de legalidade por meio do próprio Ministério Público e do Poder Judiciário. No caso das investigações realizadas pelo Ministério Público, não há esse controle externo. E, pelo que afirmou o procurador-geral da República, tampouco os órgãos do Ministério Público exercem efetivo acompanhamento de muitas dessas investigações.
O controle de legalidade é muito mais do que mero procedimento burocrático. É a proteção da liberdade dos cidadãos ante o poder público. O Estado não pode arbitrariamente imiscuir-se na vida dos cidadãos. Por isso, as investigações devem rigorosamente transcorrer dentro dos limites da legalidade. E para que isso ocorra deve haver efetivo controle sobre esses atos de investigação.
Negar a necessidade de um controle por instâncias superiores, como se bastasse o critério individual de quem está encarregado da investigação, equivaleria a negar a própria missão do Ministério Público, que tem, entre suas tarefas, a de exercer esse mesmo controle de legalidade sobre outros órgãos estatais. Em tese, promotores e procuradores deveriam ser os primeiros a defender a necessidade de fiscalização dos atos de um órgão público por outro órgão – é a sua tarefa habitual.
É preciso avançar na compreensão das liberdades e garantias fundamentais. O poder de investigar a vida dos cidadãos não deve estar submetido apenas aos limites que o Ministério Público queira corporativamente fixar. Num Estado Democrático de Direito, esses limites são fixados pela lei, e não pela vontade de cada um. De outro modo, não há liberdade.