Postado às 04h40 | 05 Jun 2020
Globo
Há quase um ano fora do governo, o general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, exonerado da função de ministro-chefe da Secretaria de governo da Presidência em 13 de junho de 2019, observa um ambiente no país que é prejudicial para a imagem das Forças Armadas. Em entrevista ao GLOBO, Santos Cruz considerou recentes declarações do Procurador-Geral da República (PGR), Augusto Aras, sobre o suposto “papel moderador” das Forças Armadas em eventuais conflitos entre poderes uma “interpretação perigosa, que dá margem para derivações e interpretações por conveniência”.
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Durante quase uma hora de conversa, Santos Cruz enfatizou na necessidade de esclarecer que posições de ministros e autoridades que vêm do mundo militar “não representam a posição das Forças Armadas”. O general admitiu que a expressiva presença de militares no governo cria confusão; disse esperar que a gestão de Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde seja temporária por sua falta de experiência no setor; defendeu que a CPI das fakenews “vá até o fundo da questão” e negou ter tido contato, quando estava no governo, com blogueiros como Allan dos Santos e Sara Winter.
— Os comandantes lideram suas forças, com uma postura altamente profissional. Os (militares) que trabalham no governo têm posições pessoais, não institucionais — frisou Santos Cruz.
O PGR, Augusto Aras, disse esta semana que as Forças Armadas teriam um papel moderador em um eventual conflito entre poderes. O que o senhor opina sobre isso?
Essa interpretação de que Forças Armadas são um poder moderador é completamente equivocada. O nosso elemento moderador é a Constituição federal, não são as Forças Armadas. Essa interpretação é extremamente perigosa, porque ela dá margem até a derivações e interpretações por conveniência etc. Então eu não acho conveniente e acho equivocado esse tipo de interpretação. Causa confusão. A harmonia dos Poderes é uma obrigação da Constituição. A população quer segurança, que assistir as ações do governo com tranquilidade e não com esse tipo de possibilidade de interpretação. A harmonia entre os Poderes não tem nada a ver com Forças Armadas, ela deve partir da boa vontade. Eles (os Poderes do Estado) são os que têm que resolver. A população espera uma discussão de alto nível. Discordância faz parte da democracia, por que se tem uma discordância já tem que falar em Forças Armadas?
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A referência permanente às Forças Armadas está relacionada, entre outros motivos, à presença expressiva de militares no governo Bolsonaro. São quase três mil militares em cargos públicos, algo inédito desde 1985, incluindo nosso atual ministro interino da Saúde que, aliás, não tem experiência na área, ou tem?
Não, nenhuma. Ele é especializado em outra área, na de logística.
E acaba de ser confirmado como ministro interino da Saúde...
Essa situação é temporária, ao menos é o que diz o governo. Mas é uma área muito importante, para especialistas, espero que essa interinidade seja temporária. É uma função que exige muita especialização, contato com a comunidade científica, médica, protocolos de saúde, medicamentos, equipamentos médicos, é uma coisa muito especializada.
Essa presença expressiva dos militares no governo, em momentos em que um setor da sociedade fala em intervenção militar nas ruas, em manifestações nas quais o presidente participa e também alguns de seus ministros militares, isso gera confusão...
Sem dúvida, pelo número de pessoas e pelas atitudes isso pode confundir e existe essa confusão. É preciso desmanchar isso. Essa confusão de imagem institucional com assuntos de governo. A associação da imagem das Forças Armadas com os assuntos corriqueiros de governo, essas discussões todas de Executivo com STF, não está acontecendo nada de excepcional. Então acho até leviandade associar as Forças Armadas com assuntos que são corriqueiros. O processo democrático é feito desse jogo de pressões. Mas compete somente a eles arrumar uma solução. Essas pessoas (militares que exercem funções no governo) não representam a instituição, não interessa o grau hierárquico. Quem representa politicamente as Forças Armadas é o ministro da Defesa e os comandantes. O pessoal da reserva pode ter a sua opinião, mas não tem nenhuma representatividade institucional.
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O ministro da Defesa participou de manifestações contra o STF...
Ele não participou, ele esteve com o presidente no helicóptero. Uma coisa é apoio e outra participação protocolar. Em diversas oportunidades acontece uma confusão, principalmente com algumas imagens, é bom que fique bem separado. Os comandantes lideram suas forças, com uma postura altamente profissional. Os (militares) que trabalham no governo têm posições pessoais, não institucionais.
O que dizem, por exemplo, o vice-presidente Hamilton Mourão ou o ministro Augusto Heleno, não representa a posição a visão de mundo das Forças Armadas?
São posturas individuais, não institucionais. O vice-presidente já representa institucionalmente o governo, mas não as Forças Armadas. Tem que desfazer essa confusão.
O ministro do STF Celso de Mello comparou o Brasil de hoje com a Alemanha nazista. Mourão e Heleno têm tido posições radicais sobre as manifestações pró-democracia e o conflito entre Executivo e STF. O ministro da Educação pediu a prisão dos membros do Supremo. E no meio estão os militares...
Todas essas posições não colaboram com nada e não atendem com a expectativa da população. Causam confusão e insegurança. A população quer paz, equilíbrio, trabalho, segurança.
Tudo isso afeta a imagem das Forças Armadas?
As nossas Forças Armadas têm altíssimo prestígio, exatamente porque elas são muito profissionais. Estão envolvidas em construção de estradas, na imigração dos venezuelanos, dando apoio no combate do coronavírus, então eles não estão participando de rotina, estão apoiando a população. Não estão envolvidos neste varejo de discussões. Trabalham em silêncio, no maior profissionalismo. Elas apoiam políticas de governo em benefício da população, não política partidária.
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Também estão produzindo cloroquina...
Se você recebe ordem para produzir um determinado produto em laboratório, você produz. Mas você não é responsável pela decisão política, e sim (é responsável) quem mandou.
Faz um ano que o senhor deixou o governo, em algum momento se arrependeu ou cada dia está mais convencido da decisão?
Não me arrependo de ter participado, de ter tentado ajudar da maneira mais honesta possível. Não deu certo, e acho até que para mim foi bom (ter saído) e para o governo também, para não ter uma pessoa que não concorda com algumas coisas.
O senhor controlava a Secretaria de Comunicação (Secom), hoje acusada pela CPI das Fake News de ter veiculado publicidade oficial em blogs de fake news, entre outros...
Depois que eu saí... outras pessoas tinham outra concepção e elas terão de responder. Essa CPI é muito importante e é importante que ela vá até o fundo, para que realmente não se tenha o uso de dinheiro público nem para notícias falsas e nem para crimes e injúrias. O resultado pode dar uma purificada no sistema.
Em paralelo, avança a investigação judicial sobre blogueiros relacionados ao governo, como Allan de Santos e Sara Winter. O senhor chegou a se relacionar com essas pessoas?
Não, não conheço, não tenho a mínima relação com aquele pessoal. Relacionamento comigo não, talvez com outras pessoas do governo.
O presidente tem falado em armar a sociedade. Qual é sua opinião sobre isso?
Primeiro, sou a favor de uma maior liberdade de aquisição. Mas o porte é outra coisa completamente diferente. Isso é uma coisa, mas pensar em flexibilizar a aquisição e porte como política de segurança pública é absurdo, porque isso é responsabilidade do Estado. E isso não pode ser uma possibilidade política, não vejo assim. Se for distorcida essa concepção pode ser perigosa.
Na campanha, o presidente questionou o centrão e hoje se aproxima dele. Como o senhor vê esse movimento?
Negociação política sempre existe, agora quando você criminaliza aquela negociação e depois pratica você está sendo incoerente. Não foi dita qual é a nova política. Quais são os limites da negociação. Não adianta só trabalhar com o chavão da nova política e não estabelecer critérios claros.
A oposição começou a falar em frente ampla, houve alguns movimentos. O que o senhor acha disso?
Não sei detalhes. Mas tem que analisar muito bem qual é o objetivo e quem são as pessoas.
O senhor não participa?
Tem que ver isso. Dependendo das pessoas a coisa pode ser séria ou perder a validade. Tem que tomar muito cuidado.
O senhor está em contato com algum partido?
Não.
Mas tem sido muito sondado...
Não me encantei ainda por partido político, não é hora disso.
Como vê a democracia brasileira hoje?
Com todas as condições para funcionar normalmente. Sólida.