Postado às 05h47 | 08 Ago 2020
Guga Chacra
Meu pai, filho de libaneses, me disse ontem que o escritor Jorge Amado talvez tivesse origem libanesa. O "Amado" seria na realidade "Habib" (algo próximo de Amado, em árabe). O Amado seria a versão aportuguesada da palavra. Inclusive, o autor de Gabriela e Tieta seria primo distante do Philip Habib, assessor para o Oriente Médio de Ronald Reagan.
Decidi descobrir se a informação era correta. É algo comum entre descendentes de imigrantes de diferentes origens. O pai da noiva do filme "Casamento grego" sempre tentava achar uma ligação de algo com a Grécia. Sou assim com o Líbano. Não bastava ter Milton Hatoun e Raduan Nassar como grandes representantes de escritores de origem libanesa. Talvez o Jorge Amado também fosse.
A alternativa mais rápida foi perguntar no Twitter se realmente Jorge Amado teria esta origem. O post viralizou a tal ponto que, nesta sexta, a jornalista Miriam Leitão me enviou a resposta escrita pela Paloma Amado, filha do Jorge Amado. O relato dela é simplesmente fantástico e decidi compartilhar aqui com os leitores.
Paloma Amado
Meus amigos, desde ontem que venho recebendo uma série de mensagens pedindo confirmação para um Twitter publicado por Guga Chacra sobre a origem libanesa de meu pai. Sou grande fã do jornalista e gostaria de esclarecer toda esta história. Não uso o Twitter, por pura incapacidade de ser sintética, por isso não posso fazê-lo diretamente. Escrevo a ele por aqui, pedindo a quem tenha uma maneira de fazer chegar esta carta ao destinatário, me ajude fazendo papel de pombo-correio!
Querido Guga Chacra,
Sou Paloma Jorge Amado, filha dos escritores Zélia e Jorge Amado. Desde ontem que recebo posts de meus amigos perguntando sobre a origem libanesa de meus pais, pois você tuitou sobre isso. Não uso Twitter, por ser muito prolixa, e terem me dito que ele só se presta para mensagens curtas... Queria muito esclarecer você sobre este assunto, apesar de ter algumas controvérsias.
Antes de contar sobre nossa genealogia, deixe-me dizer que o chamo de querido por pura bem-querença mesmo. Sou ouvinte assídua do Globo News, e acompanho você, seus comentários, suas reportagens há algum tempo. Gosto muito, me sinto sua amiga.
Os Amado vieram de Portugal com Nassau no tempo da Inquisição. Isso fez um primo nosso, bem mulatão (vou citar o nome: Gilberto Amado), achar que éramos holandeses. Papai o chamou à realidade: éramos judeus safaradi fugindo... E estou certa de que era isso mesmo. Sem dúvida nenhuma, papai tem cara de árabe.
Eu era bem menina, quando Jânio foi presidente, e ele convidou papai para ser embaixador no Egito, para dar um "up" em sua política terceiro-mundista. Na minha casa não se falava em outra coisa. Nasser respondeu ao pedido de agrément em menos de 24 horas, recorde nunca visto no Itamaraty. Eu me via perdida naquilo tudo, até que vi uma foto de Nasser... A cara de papai. Entendi então que era uma coisa familiar, que o tal presidente do Egito seria um parente, etc. Papai recusou, Jânio renunciou... A imagem de um egípcio quase gêmeo de papai ficou na minha memória, na minha retina.
Um dia, nos anos 80, papai me pediu para falar com a Embaixada do Iraque, pois soubera de um livro seu traduzido, em edição pirata, que circulava por todo o mundo árabe. Ele não queria contestar, desejava apenas ter um exemplar em sua coleção. Eu vivia em Brasília, trabalhava na Presidência da República, telefonei pedindo para falar com o Adido Cultural da Embaixada do Iraque. Ele atendeu. Eu disse:
— Senhor, meu nome é Paloma Jorge Amado, sou filha do escritor Jorge Amado...
Ele me interrompeu, e seriamente contestou:
— Amado não, minha senhora, Ahmad! Ele é árabe e nós temos muito orgulho disso.
Não neguei o fato, que não sou besta. E continuamos a conversar. Ele prometeu buscar um exemplar do livro para nós, mas, sendo pirateado, não fez nada.
Passei a chamar papai de seu Ahmad e ele gostou muito. Ele adorava o fato de ser de origem safaradi. Dizia: Árabe judeu e obá de Xangô, quer coisa melhor?
A respeito de escrever sobre os turcos, forma com que chamavam sírios e libaneses no Sul da Bahia, era impossível escrever sobre esta região sem que participassem como personagens de igual importância à dos coronéis de cacau, dos trabalhadores das roças.
Resumindo, caro Guga, provavelmente temos muito sangue árabe, provavelmente libanês — Nassau foi o socorro dos que fugiram ao Império Otomano —, e temos imenso orgulho disso. Não sabemos, infelizmente, as raízes deste tronco de nossa árvore.
De minha parte, vou contar a você um segredo: o grande amor de minha vida foi — e é ainda — um libanês. Amor tardio, perto dos cinquenta, com imenso afeto — põe imenso nisso! A ponto da irmã dele, a mais velha, que cuidava da família, ao perceber o irmão sessentão apaixonado, me ligar, para um diálogo que foi mais ou menos assim:
— Querida, sou a irmã de fulaninho. Vejo que ele está diferente do que sempre foi na vida. Penso que é paixão.
— Eu só posso falar por mim... De minha parte, estou apaixonadíssima...
A pergunta seguinte foi tiro e queda...
— Você sabe fazer músculo na coalhada?
— Não, não sei...
Ela sussurrou para fora do fone...
— Não tem problema, eu ensino...
— E quibe cru? E babaganushe?
— Não, também não sei...
— Não se preocupe, vamos dar um jeito nisso.
Infelizmente não deu certo, o amor tardio dá medo. Eu ainda tinha esperanças de ter um filho libanês, mesmo próxima aos 50 anos. Nunca contei isso a ele.
Querido Guga, veja que ser libanês é mais ou menos um destino nosso. Sou sempre muito solidária com esse povo maravilhoso.
Receba um grande abraço da sua amiga