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Em meio à pandemia, Bolsonaro e governadores testam limites de poder na Federação

Postado às 05h44 | 05 Abr 2020

A crise sanitária e econômica gerada pela pandemia da Covid-19 ganhou contornos de disputa política no Brasil entre chefes de poderes executivos. Nas últimas semanas, o presidente da República, Jair Bolsonaro (Sem Partido), e parte dos governadores do País intensificaram uma queda de braço sobre as medidas de contenção ao novo coronavírus, especialmente no que diz respeito às determinações de confinamento.

Em um cenário que cobra ações coordenadas, como apregoam organismos internacionais de combate à Covid-19, o desentendimento entre quem dita as regras do jogo levanta questionamentos sobre os prejuízos possíveis à democracia e sobre até onde vão os poderes da União e dos entes federados.

"Não existe possibilidade de pensarmos numa democracia estável com as dissidências que nós percebemos nesse momento, entre a União e as ações que isoladamente foram obrigados a tomar governadores e prefeitos", afirma a advogada, mestre em Ciência Política e doutora em Direito, Estado e Constituição pela UnB, Soraia Mendes.

Prerrogativas

Ela explica que, segundo a Constituição, cabe ao Governo Federal decidir sobre o fim de restrições de circulação em rodovias interestaduais e internacionais, portos e sobre o uso de transporte aéreo no País, por exemplo. No que tange à reabertura do comércio, revogando a proibição estabelecida por prefeitos e governadores, inclusive o do Ceará, Camilo Santana (PT), não.

Ainda assim, já durante a crise, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu liminarmente que governadores e prefeitos podem determinar sobre as restrições de circulação de transporte. A postura do STF derruba trecho da medida provisória que restringe ao Governo Federal determinar o que são serviços essenciais.

"Está se tratando de uma medida de atenção à saúde pública, de maneira que os governadores podem determinar atitudes como o fechamento do comércio não essencial, o cancelamento de aulas e tudo mais, nesse sentido, porque essa é uma competência dividida entre União, estados e municípios", pontua Soraia.

O sistema federalista adotado no Brasil concede autonomia administrativa para estados e municípios em áreas como saúde, educação e comércio, o que restringe a possibilidade de interferência do presidente em decisões de governos locais nesses campos.

O cientista político Djalma Pinto evoca o Artigo 23 da Constituição Federal para afirmar que é competência comum de todos os entes da Federação o cuidado da saúde e assistência pública. "O que a sociedade espera é que as autoridades se harmonizem para encontrar um ponto de atuação que atenda melhor aos interesses da coletividade, que preserve a saúde e com menos danos para todos", diz.

Isolamento

A harmonização, no entanto, não é o que se tem visto nos últimos dias. O Governo Federal tem perdido batalhas consideradas caras à Bolsonaro contra governadores e prefeitos, inclusive na Justiça. A situação tem feito Bolsonaro perder aliados de sua campanha em 2018, como o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM).

"Não há dúvidas de que, nesse momento, politicamente, o presidente está isolado. Isso quer dizer que as principais figuras do sistema político não emprestam a ele qualquer tipo de confiança ou ligação", afirma o cientista político e professor universitário Cleyton Monte. Ele cita, por exemplo, que o desentendimento com governadores, antes refletido especialmente nos gestores do Nordeste, agora atinge os líderes de grandes estados, como São Paulo e Rio de Janeiro.

O isolamento, ressalta o cientista político, tem se estabelecido também na relação com o Congresso Nacional, com alguns empresários e com representantes do agronegócio. Os presidentes da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado Federal, Davi Alcolumbre (DEM-AP), têm cobrado publicamente mudança de postura do presidente.

O cientista político David Fleischer ressalta os riscos do conflito. "A democracia pode ser ameaçada por conflitos entre os poderes, já temos certo conflito entre o Legislativo e o presidente, entre o Supremo e o presidente também. Isso foi muito agudo em 2015, como prévia do impeachment de Dilma Rousseff", destaca.

Mundo

Até na postura de ser contrário ao isolamento horizontal da população, Bolsonaro perdeu aliados, após os presidentes dos Estados Unidos, Donald Trump; e do México, Andrés Manuel López Obrador, voltarem atrás de discursos contra a medida.

"Bolsonaro é um presidente que se alimenta de crises permanentes. Como seria se, desde o começo, ele tivesse levado em conta os protocolos junto aos governadores? Não seria o Bolsonaro", analisa Cleyton Monte. "Ele chega ao Governo em 2018 com o discurso de ser a antipolítica, que vai contra o sistema", diz o cientista político.

Ele ressalta que os governadores, apesar da postura incisiva que têm mantido, sofrem limitações no que diz respeito às gestões econômicas, que podem trazer prejuízos aos estados diante da queda de braço com o governo federal. "Ele (Bolsonaro) tem noção de que a economia não vai deslanchar, então está falando diretamente para o povão, não para uma classe média, não mais com o sistema político", ressalta Monte.

"Democracia significa a possibilidade de estar participando da vida política de um país. Isso não se dá com a fome, com a miséria e com a doença perambulando nas ruas. São pontos para pensar como essa queda de braço (entre governadores e presidente) é absolutamente prejudicial à nossa democracia", pontua, por sua vez, Soraia Mendes.

 

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