Postado às 04h33 | 09 Fev 2022
Elio Gaspari
Em março de 2019 o mundo parecia outro. Sérgio Moro reinava como ministro de Bolsonaro, Donald Trump recebia o capitão no jardim da Casa Branca e admitia a possibilidade de o Brasil entrar para a OTAN. Eram os tempos da Operação Lava Jato.
Ela tinha fases, sempre com nomes pitorescos: Erga Omnes, Vidas Secas, Saqueador ou Calicut. Aquela batizada como Radioatividade foi a 16ª e tratava de negócios em torno da construção da usina nuclear de Angra 3.
No seu rastro, a pedido do Ministério Público, o juiz Marcelo Bretas, encarnação carioca da República de Curitiba, determinou a prisão preventiva de Michel Temer e mais sete pessoas. A decisão tinha 46 páginas amparando-se em tratados internacionais e na defesa do bem público.
Naquele angu abundavam insinuações e faltava carne. Seu texto continha pelo menos vinte vezes a palavra "parece", mas o espetáculo estava garantido.
Numa quinta-feira o ex-presidente da República foi detido na rua e mandado para a cadeia sem ter sido indiciado, denunciado, condenado ou sequer ouvido. Tudo a partir do que o juiz dizia ser "uma análise ainda superficial" dos fatos.
Reforçando a decisão de Bretas, uma procuradora revelou que um amigo de Temer teria tentado depositar R$ 20 milhões em dinheiro vivo numa agência bancária. Quando alguém lembrou que deveria existir um vídeo do portador carregando uma mala com as notas que pesariam 25 quilos, a turma do MP disse que o caso da mala "ainda precisa ser investigado e apurado". Nunca mais se falou dos R$ 20 milhões.
Esse processo levou Temer à cadeia outra vez. No total, o ex-presidente dormiu 10 noites na prisão. Em todos os casos foi libertado por decisão das instâncias superiores. Se isso fosse pouco, o juiz Bretas recusou-se a liberar seu passaporte em duas ocasiões, e foi novamente contrariado.
O lava-jatismo azucrinou a vida do ex-presidente e de Eduardo Carnelós, seu advogado, por três anos. Há poucos dias, o juiz Marcus Vinicius Reis Bastos, em cuja 12ª Vara Federal de Brasília está a encrenca, rejeitou "por inépcia" a denúncia apresentada contra o ex-presidente e as outras sete vítimas da operação Radioatividade com suas malvadezas judiciais. O juiz fez isso com palavras duras.
Faltou à acusação "descrição objetiva de todas as circunstâncias dos atos ilícitos" e "imputa aos denunciados condutas desprovidas de elementos mínimos que lhe deem verossimilhança". Mais:
"Ao narrar as supostas corrupções ativa e passiva imputadas a todos os réus, a denúncia, ampla e genérica, não é capaz de delimitar contornos do fato típico." Uma licitação que teria movido propinas fracassou e "ademais, constam dos autos quatro relatórios policiais extensos que remetem a inúmeras outras investigações e investigados em procedimentos correlatos, além de analisarem materiais apreendidos, sem nada efetivamente provarem quanto aos fatos específicos narrados na presente denúncia".
Temer ralou duas canas e cerca de dez inquéritos e investigações. Penou os efeitos das ações espetaculares do lava-jatismo.
Quem lê as ambiguidades e as insinuações da decisão de Bretas mandando prender Temer, em 2019 e a do juiz Reis Bastos em 2022 rejeitando a denúncia, visita a essência do lava-jatismo: no início, acusações sem provas e, ao fim, nada. No meio, teatro.