Postado às 07h12 | 26 Jun 2022
Elio Gaspari
Seguradora cobra por remédio concedido por liminar da Justiça, mas que não estava na lista da Anvisa
Durante cerca de 20 anos o economista Cláudio Salm, ex-diretor do IBGE, foi freguês da operadora de saúde privada Unimed. Diagnosticado com um câncer de pulmão, recorreu a um medicamento importado.
Como o fármaco não estava na lista da Anvisa, foi à Justiça e obteve uma liminar que lhe assegurava o reembolso.
Meses depois, em abril de 2006, o remédio entrou na lista da agência.
Em agosto de 2019 Cláudio Salm morreu.
A Unimed está na Justiça, cobrando R$ 176 mil ao espólio do falecido.
Como o Superior Tribunal de Justiça decidiu que as operadoras não são obrigadas a reembolsar o custo de medicamentos que não estão no rol da Anvisa, ficou a questão:
Se a Justiça concedeu uma liminar quando o remédio não está na lista e depois ele é incluído, o espólio do freguês tem que pagar?
Se estatal tivesse cuidado de investigar denúncia de 2017, contrato com escritório custaria menos à sua reputação
Em dezembro de 2017, o repórter Maurício Lima contou que a Eletrobras contratou por cerca de R$ 400 milhões o escritório de advocacia americano Hogan Lovells para investigar roubalheiras descobertas pela Operação Lava Jato no setor de energia. As roubalheiras estavam estimadas em R$ 300 milhões.
Eram os estranhos tempos do lava-jatismo. O Datafolha dava 35% das preferências para uma candidatura de Lula e 17% para Bolsonaro. Donald Trump estava na Casa Branca e, no Brasil, o economista Paulo Guedes trabalhava pela candidatura do apresentador Luciano Huck à Presidência da República. O IBGE informava que, em 2016, 52,2 milhões de brasileiros viviam abaixo da pobreza. Hoje são 54,8 milhões.
A notícia de Maurício Lima foi rebatida pela Eletrobras: As informações seriam "incorretas", deu o assunto por encerrado e batalhou para mantê-lo sob sigilo.
Passaram-se quatro anos e o lava-jatismo tornou-se um anátema. Desde setembro de 2020, circula no Tribunal de Contas da União um relatório de inspeção com 379 páginas e o carimbo de "reservado" sobre o contrato assinado pela Eletrobras com o escritório Hogan Lovells.
No último dia 15, os ministros começaram a tratar do assunto e o trabalho foi suspenso por um pedido de vistas. Está estabelecido pelo relatório que a Eletrobras pagou R$ 340 milhões para investigar desvios que ficaram abaixo dessa quantia.
O relatório mostra como torraram-se R$ 340 milhões para investigar empreiteiras metidas em licitações viciadas, sobrepreços (quando o serviço é caro), superfaturamentos (quando há mutreta na cobrança), benefícios impróprios e subcontratações malandras.
O trabalho da infantaria do TCU mostrou um painel desalentador. Nos contratos com o escritório Hogan Lovells, havia vícios, sobrepreços, superfaturamentos e subcontratações que chegaram a R$ 263 milhões, pagando-se em muitos casos por serviços que não eram comprovados.
Nos tempos da Lava Jato, empreiteiros e gestores públicos viraram Belzebus. Em muitos casos, eram. No entanto, olhando para o que aconteceu no contrato da Hogan Lovells, ocorre um raciocínio cínico, porém inevitável: roubava-se na construção de hidrelétricas, mas as empresas empregavam milhares de trabalhadores e, ao fim do negócio, as usinas produziam eletricidade. O trabalho da Hogan Lovells empregou algumas dezenas de afortunados e produziu papéis de pouca serventia.
A investigação do TCU encontrou "a existência de sobrepreço na contratação" e mais:
Membros da Comissão Independente de Gestão da Investigação da Eletrobras, a Cigi, além de serem remunerados pelos serviços que prestavam, foram reembolsados por colaborações adicionais. Entre eles: Ellen Gracie Northfleet (ex-presidente da Supremo Tribunal Federal), Durval José Soledade Santos (ex-diretor da Comissão de Valores Mobiliários) e Júlio Sérgio de Souza Cardoso.
"Foi identificado que a Eletrobras firmou termos de reconhecimento de dívida (TRD), com pessoas físicas e jurídicas em vista da prestação de serviços, sem cobertura contratual formal."
O escritório Ellen Gracie Advogados Associados recebeu R$ 474 mil. Os doutores Durval e Júlio Sérgio cobraram R$ 67,5 mil cada um.
Além desses reembolsos, entre 2015 e 2017, Durval recebeu R$ 68 mil mensais e o Ellen Gracie Associados, R$ 131,1 mil mensais em 2015 e 2016 como remuneração por integrar a comissão.
Pagamentos legítimos, remuneravam trabalho. Durval José Soledade Santos, recebeu R$ 2.517 por hora trabalhada e o escritório de Ellen Gracie, R$ 3,6 milhões (R$ 4.788 por hora).
O documento informa:
O relatório de inspeção listou 53 responsáveis e sugeriu que todos sejam ouvidos. Na caçamba, entraram executivos e membros dos conselhos da Eletrobras, bem como os sócios e diretores das empresas contratadas.
O documento é apenas um ponto de partida para o julgamento. Está longe de ser um veredito e a memória das decisões do Tribunal de Contas tem pelo menos um horrível esqueleto. Em 2017 o TCU congelou os bens dos conselheiros da Petrobras numa decisão absurda, com um lance de amnésia seletiva.
Uma coisa é certa: se em 2017 a Eletrobras tivesse tomado o cuidado de investigar a denúncia de Maurício Lima, o caso do contrato com o escritório custaria menos à sua reputação.
Madame Natasha adora ler documentos do Tribunal de Contas da União e concedeu mais uma de suas bolsas de estudo à equipe do relatório de inspeção do contrato da Eletrobras com o Hogan Lovells.
Em duas ocasiões eles queriam dizer "acessoriamente" e escreveram "assessoriamente".
Nada grave. Em março de 1964, antes de entrar para a Academia Brasileira de Letras, o general Aurélio de Lyra Tavares, futuro ministro do Exército, disparou um "acessoramento" numa carta ao seu colega Humberto Castello Branco.