Postado às 05h44 | 14 Out 2020
Elio Gaspari
O ministro Marco Aurélio Mello disse quase tudo:
“O juiz não renovou, o Ministério Público não cobrou, a polícia não representou para ele renovar. Eu não respondo pelo ato alheio, vamos ver quem foi que claudicou.”
Quase tudo, porque quem soltou André do Rap, chefão do Primeiro Comando da Capital, condenado a 27 anos de prisão, foi Marco Aurélio Mello.
Dizer que essência da lei que o ministro seguiu ampara a libertação de um bandido como o chefão do PCC é uma demasia. Assim como foi uma demasia sua decisão de 2000, quando soltou o banqueiro Salvatore Cacciola, que viria a se escafeder (como André do Rap), até ser preso em Monte Carlo e recambiado para Bangu. Nesses casos, como em outros, iluminou-se na controvérsia.
Como no crime do Expresso do Oriente, André do Rap foi solto por todos, começando pelos ministros do Supremo Tribunal Federal que derrubaram a tranca para os condenados em segunda instância. Foi solto também pelos parlamentares que votaram um dispositivo escalafobético que permite a libertação de qualquer pessoa presa preventivamente há mais de 90 dias sem manifestação do juízo pela prorrogação do prazo.
O ex-ministro Sergio Moro, com sua lógica angelical, diz que nada tem a ver com a girafa. De fato, ela não saiu do seu zoológico, mas o doutor botou a boca no mundo com um argumento de má qualidade: a exigência da renovação da preventiva a cada 90 dias sobrecarregaria os juízes. Quem entende do assunto estima que são, no máximo, cinco horas de trabalho por mês para um juiz de vara superpovoada. Foi o juiz Moro quem usou à saciedade o instrumento da preventiva como uma forma de pena antecipada. O ministro Gilmar Mendes cansou-se de denunciar essa astúcia.
Os doutores do andar de cima soltaram André do Rap, e corre-se o risco de sobrar para o andar de baixo. O Brasil tem centenas de milhares de pessoas pobres, em geral jovens pobres e negros, encarceradas sem condenação. Do jeito que a libertação de André do Rap entortou, surge a impressão de que para evitar a “sobrecarga” dos juízes, deve-se apertar o parafuso da preventiva.
Em sua batalha pela restauração do habeas corpus, o grande Raymundo Faoro, presidente de uma OAB que não existe mais, explicava aos generais que o instituto não discute o mérito da acusação que há contra uma pessoa, mas uma ilegalidade pontual na conduta do Estado. Os generais entenderam.
André do Rap não foi libertado porque é inocente, mas porque o STF decidiu que não se pode prender uma pessoa apenas com uma condenação em segunda instância. Ademais, a lei diz que os juízes devem se manifestar a cada 90 dias. Não é muito, sobretudo considerando que o cidadão está na cadeia há três meses. Refrescando a vida dos magistrados, arrisca-se deixar milhares de pessoas mofando nos cárceres.
O caso de André do Rap abriu a porta do armário das idiossincrasias cultivadas pelos 11 ministros do Supremo Tribunal. O juiz americano Oliver Wendell Holmes dizia que sua Suprema Corte se parecia com nove escorpiões numa garrafa. No Supremo Tribunal Federal há 11. O choque dos ministros Luiz Fux e Marco Aurélio Mello é apenas um asterisco desse ambiente irradiador de malquerenças.