Postado às 10h26 | 22 Mar 2020
Elio Gaspari
Na sua catadupa de declarações estapafúrdias, Jair Bolsonaro disse à rádio Bandeirantes que “vai ter um caos muito maior se a economia afundar (...), se acabar a economia, acaba qualquer governo, acaba o meu governo”.
Nessas poucas palavras ele revelou o estado de sua alma, na qual misturam-se teatros de máscaras, delírios e perplexidades. Para ele, a epidemia é um detalhe. O essencial é “meu governo”. Seu mandato só deverá acabar no dia 1º de janeiro de 2023, mas transformou-se numa usina de encrencas, felizmente contornado pela ação dos governadores.
Brasília poderia ter sido uma fonte de informações e de orientações respeitáveis. Degradada, a ação federal move-se entre comédias e provocações. Disso resultou uma descoberta: os governadores e os prefeitos são mais relevantes que o presidente.
Enquanto São Paulo facilita o acesso ao álcool em gel, o filho do presidente decidiu insultar o governo chinês. Já o ministro da Saúde, com um desempenho exemplar, teve que aturar uma crise de ciúmes juvenis de Bolsonaro porque reuniu-se com o governador João Doria. (Talvez convenha que o capitão saiba: Luiz Henrique Mandetta pode pedir o boné.)
Desastradamente, Bolsonaro cumpriu uma de suas promessas de campanha: “Mais Brasil e menos Brasília”.
Seu governo não deverá acabar. O que acabou, porque nunca deveria ter existido, foi a fantasia palaciana de uma gestão que atropelaria o Congresso, liderada por uma milícia delirante, disseminadora de ódios e medos. Quando o perigo chegou, produziram negacionismos e teatralidades.
As palhaçadas do oficialismo federal são produto de tempos estranhos. A sociedade brasileira bate panelas, aplaude os trabalhadores do setor de saúde e se move. Exemplos: a Ambev anunciou que produzirá 500 mil garrafas de álcool em gel, doando-as à rede pública de hospitais.
A empresa de entregas iFood anunciou que criará um fundo de R$ 50 milhões para socorrer restaurantes. Vizinhos oferecem-se para ir aos supermercados para fazer as compras de idosos. Tudo isso sem governo.
Dentro de poucos dias as grandes redes de medicina privada, com sua enorme concentração de afortunados, descobrirão que devem romper o silêncio virótico em que se isolaram para informar o que podem fazer para ajudar a rede pública de saúde.
Faz tempo, quando os Estados Unidos tinham 32 milhões de desempregados e seu sistema financeiro estava à beira do colapso, Franklin Roosevelt assumiu a Presidência e disse no seu discurso de posse uma frase que marcou a época:
“A única coisa de que devemos ter medo é do próprio medo”.
Bernardo Pereira de Vasconcelos foi um dos gigantes do conservadorismo brasileiro na primeira metade do século 19. Jair Bolsonaro teve o seu momento Bernardo ao lidar com o coronavírus.
No dia 17 de abril de 1850, quando o Rio estava aterrorizado pela febre amarela, ele foi para a tribuna do Senado e disse o seguinte:
“Eu também estou persuadido de que se tem apoderado da população do Rio de Janeiro um terror demasiado, que a epidemia não é tão danosa como se têm persuadido muitos; não é a febre amarela a que reina.”
Seis dias depois Bernardo morreu, levado pela febre.
O poder de delírio do deputado Eduardo Bolsonaro é coisa sabida. Como diz o vice-presidente Hamilton Mourão, se ele se chamasse Eduardo Bananinha, ninguém lhe daria importância. Isso é uma coisa. Bem outra é o embaixador da China bater boca com o deputado, dizendo que “exige” que ele “retire imediatamente” suas afirmações “e peça desculpas”.
Pela sua função, o doutor Yang Wanming deve ter modos. Um diplomata acreditado junto ao governo brasileiro pode protestar, mas não pode exigir que um parlamentar retire o que disse.
Esse tipo de linguagem assemelha-se mais à que os ingleses usavam no século 19, quando impunham sua vontade ao império do meio.
Quando o dólar estava a R$ 3,90, Eremildo comprou uma passagem para a Disney e deveria embarcar na semana que vem. Ao saber que o governo ajudaria os necessitados, acreditou que ganharia algum.
O cretino soube que a primeira providência efetiva do governo foi um pacote de ajuda às empresas aéreas.
Eremildo entendeu que os doutores espicharam o prazo para que a empresa lhe devolva o dinheiro que desembolsou pela passagem da viagem cancelada. Agora ele deverá esperar até um ano.
O cretino acha que o governo deveria espichar também o prazo de outra passagem que ele está pagando a prazo.
Gente que via em Paulo Guedes muito mais que um posto Ipiranga está espalhando cascas de banana no seu caminho.
Ouçam Simonsen
O professor Mário Henrique Simonsen costumava repetir um ensinamento que pode ser útil para os mascarados de Brasília:
“Formulado de maneira correta, o problema mais difícil do mundo um dia será resolvido. Formulado de maneira incorreta, o problema mais fácil do mundo jamais será resolvido”.
Quem está com tempo para matar no isolamento, tem iPad e R$ 37,90 para gastar, pode baixar o aplicativo Art Authority. Às vezes fica lento, mas é um passatempo valioso e instrutivo.
Trata-se de um arquivo com imagens de 100 mil pinturas e esculturas. Pode ser visitado por autor, período, museu ou cidade. Sandro Botticelli? São 304 imagens. Sua magnífica “Primavera” vem com 24 detalhes.
Quem atravessar toda sua coleção verá como a vida do pintor sofreu quando foi patrulhado pelo fanatismo religioso. Van Gogh? São 609 pinturas e desenhos. Museu do Louvre? São 2.000 imagens.
O aplicativo mostra as obras por ordem cronológica e permite ir para o verbete do autor na Wikipedia (em inglês). Além disso, cada um pode salvar suas peças preferidas, formando um museu particular.
De graça, pode-se ir ao Google Arts & Culture. Diversos museus podem ser visitados sem sair de casa.
Natasha sobreviveu a muitos presidentes e epidemias. Ela acredita que um dia a Covid-19 será apenas uma amarga lembrança, mas teme que o pernosticismo cause danos irreparáveis ao idioma.
Maganos e até mesmo muita gente boa estão falando que será criado um voucher para socorrer os trabalhadores informais.
“Vaucher” é o nome, em inglês, do velho e bom vale. Ninguém fala em “vaucher” refeição nem em “vaucher” transporte.
Um cronograma para que o general Braga Netto, titular da gabinete de crise da epidemia, possa pensar nos prazos para que as medidas de amparo social do governo comecem a funcionar. Algo como o dia em que o entregador de pizza receberá seu vale.
Durante a depressão dos anos 1930, o governo de Franklin Roosevelt levou uma semana para redigir a legislação de estímulo ao emprego. Nos seus primeiros 30 dias empregou 4 milhões de pessoas.