Postado às 07h32 | 11 Out 2020
Elio Gaspari
Ao alterar o regimento do Supremo Tribunal Federal levando para o plenário questões penais que envolvem maganos com foro privilegiado, o presidente do Supremo Tribunal, ministro Luiz Fux, limitou o alcance da jabuticaba das duas turmas da Corte. Com a provável chegada de Kassio Nunes à segunda turma, no lugar de Celso de Mello, Gilmar Mendes reinaria absoluto. Com o seu voto, o de Kassio, mais o de Ricardo Lewandowski, formariam maiorias automáticas, inclusive nos processos da família Bolsonaro.
Isso no varejo. No atacado, Fux fez muito mais, pois as turmas do Supremo são uma jabuticaba criada no século passado. Não há no mundo corte constitucional renomada que decida em turmas. A Constituição diz que os ministros são 11, e 11 deveriam ser os ministros que decidiriam. Gilmar Mendes não gosta que se busquem paralelos na Corte Suprema dos Estados Unidos, mas lá só há turmas quando os juízes fazem ginástica no último andar do prédio.
A providência é tão cristalina que Gilmar Mendes não gostou, mas votou a favor da mudança, decidida por unanimidade.
A provável chegada de Kassio Nunes ao Tribunal, com seu currículo e seu percurso, obrigará Fux e seus colegas a trabalhar para recolocar a composição nos trilhos. Limitando o poder das turmas, a bola volta ao centro do campo, e as decisões que envolvem maganos com foro privilegiado vão para o plenário. A menos que se faça uma pirueta, muita coisa poderá acontecer em função dessa mudança, e mudará a qualidade da proteção de réus condenados por malfeitorias e roubalheiras. Aquilo que poderia ser resolvido com três conversas, precisará de pelo menos seis.
Com a segurança de um banqueiro alemão, doutor Eduardo Paes, ex-prefeito do Rio e candidato a um remake, anunciou: “Não faria a ciclovia da Niemeyer. É óbvio. É uma área frágil, entre o mar e a encosta. Morreram duas pessoas.”
Paes usa a expressão “é óbvio” de um jeito que os outros parecem bobos, e ele, esperto. O mar e a encosta já estavam lá quando ele resolveu fazer a ciclovia Tim Maia, “a mais bonita do mundo”, nas suas palavras. Quando ela desabou, em 2016, ele pontificou: “É óbvio que se essa ciclovia tivesse sido feita de forma perfeita, nós não teríamos essa tragédia, esse absurdo”. A ciclovia foi licitada, contratada e fiscalizada por seu governo.
Prefeito do Rio de 2009 a janeiro de 2017, Paes fez uma administração exuberante, com a Olimpíada (que deixaria um legado) e o Porto Maravilha. Resultou um Carlos Lacerda que deu errado.
Entre 1960 e 1965, Lacerda fez a adutora do Guandu e criou o parque do Aterro do Flamengo. Os dois estão aí até hoje. O legado da Olimpíada e o Porto viraram micos.
Paes disputa a prefeitura com Marcelo Crivella e seus parrudos e óbvios Guardiões comissionados.
Bolsonaro diz que acabou com a corrupção no governo. Como Lula diz que nunca houve corrupção no dele, vá lá.
Mesmo assim, falta explicar porque em agosto de 2019 o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação publicou um edital para a compra de 1,3 milhão de computadores, laptops e tablets, coisa de R$ 3 bilhões. A Controladoria-Geral da União descobriu que o sistema estava viciado e mostrou que uma escola de Minas Gerais receberia 30.030 laptops para seus 255 alunos. Outras 355 deveriam receber mais de um equipamento para cada estudante.
O edital foi suspenso e depois cancelado. De lá para cá, passaram pelo MEC quatro ministros, e pelo FNDE, cinco presidentes. Nunca se explicou como o tal edital foi concebido, como tramitou nem quem foi seu patrono.
Detalhe: o jabuti foi percebido, interceptado e neutralizado pelos mecanismos de controle do governo de Bolsonaro, mas o dono do bichinho continua no escurinho de Brasília.
O ano de 2020 entrará para a história do Prêmio Nobel como aquele em que se quebrou a barreira do gênero na ciência. Duas mulheres ganharam o prêmio de Química e uma compartilhou o de Física. (Como dizia Larry Summers, o presidente de Harvard que foi defenestrado, as mulheres não têm aptidão para a ciência.)
Andrea Ghez, que ganhou o prêmio de Física, é neta de um judeu que foi para os Estados Unidos depois da promulgação das leis racistas do fascismo italiano.
O pai de Andrea nasceu em Nova York em 1938, quando o alemão Otto Hahn descobriu a fissão nuclear. Trabalhava com ele a cientista Lise Meitner. Por judia, foi demitida da universidade e teve que fugir da Alemanha; por mulher, foi esquecida. Hahn ganhou o Nobel sem reconhecer a participação de Meitner na descoberta.
Algum dia, Lise Meitner terá o devido reconhecimento. Se não for pela sua participação nas pesquisas da fissão, que seja pelo fato de que, em 1943, foi convidada para um projeto secreto anglo-americano. Ela sabia o que se queria e recusou a oferta: “Não quero ter nada a ver com a bomba.”
Em agosto de 1945, quando Hiroshima foi destruída, Meitner esfriou a cabeça caminhando por cinco horas e à noite anotou em seu diário: “Ninguém entendeu nada.”
Citando Gilberto Amado, um beija-flor de vaidade, o professor Joaquim Falcão resumiu a patetada de Kassio Nunes ao turbinar seu currículo:
“Ser mais do que se é, é ser menos.”
Turbinar currículo é um vício recente. A mania pegou Dilma Rousseff, Damares Alves, Ricardo Salles, Marcelo Crivella, Carlos Alberto Decotelli e Wilson Witzel.
Nesse grupo, quem brilhou foi Witzel. Em vez de fraudar títulos de universidades comuns ou até chumbregas, mentiu grande e anunciou-se diplomado por Harvard, onde nunca pisou.
Em tempo: o ministro Celso de Mello, em cuja cadeira Kassio Nunes quer sentar, foi um dos maiores juízes da Corte. Era apenas advogado, sem mestrado nem doutorado.
A geração que nasceu depois de 1955, como Jair Bolsonaro, deve ter sido a única na História humana que financiou a criação de três polos de construção naval. Houve o de Juscelino Kubitschek, o de Ernesto Geisel e o de Lula. Três fracassos, muitas roubalheiras, um pior que o outro.
Agora o governo apresentou em regime de urgência um projeto de lei apelidado de BR do Mar, que vai na direção contrária e poderá resultar na destruição das empresas de cabotagem que existem no Brasil. Não houve debate, não se conhecem estudos técnicos e há o risco de se entregar esse mercado a um cartel de grandes empresas internacionais às vezes associadas a grupos brasileiros. A ideia da BR do Mar pode ter virtudes, mas levada a tapa no escurinho de Brasília, tem tudo para dar errado.