Postado às 07h50 | 12 Dez 2021
Elio Gaspari
Bolsonaro pintou-se para uma nova guerra: "Estamos trabalhando agora com a Anvisa, que quer fechar o espaço aéreo. De novo, porra? De novo vai começar esse negócio?".
A Anvisa nunca sugeriu que se fechasse o espaço aéreo, mas, diante do surgimento de uma nova variante do vírus, o presidente anteviu uma nova batalha.
Ele não gosta da vacinação, preferia cloroquina e prefere viver no mundo da negação, supondo que com isso defende a economia. Há um ano, Bolsonaro dizia que a vacina Coronavac não seria comprada. Comprou-a. Condenava o isolamento social e teve que aceitá-lo.
De fato, pode ser que comece tudo de novo, porque o governador João Doria anunciou que instituirá o passaporte de imunização em São Paulo. Ele comprou a vacina chinesa e em janeiro começou a aplicá-la.
A nova encrenca de Bolsonaro com a Anvisa foi um retrato da disfuncionalidade de seu governo. Com mais de 600 mil mortos, o governo federal ainda assim teria algo de que se orgulhar.
O Brasil está chegando perto da marca de 300 milhões de doses aplicadas, com cerca de 65% da população imunizada. Apesar disso, Bolsonaro prefere procurar uma nova briga.
Arrumou um ministro da Saúde capaz de dizer que prefere perder a vida à liberdade, como se esse dilema estivesse na mesa.
Depois de ter fritado dois ministros que tomaram o partido da ciência e de ter amparado um general desastroso, o capitão sente-se confortável com o médico Marcelo Queiroga.
É seu estilo, mas não precisava chamar a Agência Nacional de Vigilância Sanitária para a briga.
Primeiro, porque a Anvisa é um órgão independente. Além disso, porque está atirando num quadro de sua tropa, o médico e almirante Antonio Barra Torres, cujo pecado seria ter traçado uma linha no chão, além da qual não pisaria.
Barra Torres pode ser visto como um exemplo do oficial que atendeu ao chamado do capitão. Militar e cavaleiro da Ordem de Malta, foi colocado na direção da Anvisa em março de 2020, quando os mortos pela Covid eram cinco, acompanhou Bolsonaro numa manifestação que desafiava a pandemia e o Supremo Tribunal Federal. Ele não se entendia com o ministro Luiz Henrique Mandetta e tinha tudo para virar um daqueles aloprados que o general Pazuello levaria logo depois para o Ministério da Saúde.
Sem estridência, Barra Torres, afastou-se do negacionismo. Recusou-se a patrocinar as virtudes da cloroquina e disse coisas desagradáveis, tais como: "Estamos trabalhando no mundo real, que é o mundo científico", ou " vamos deixar de bobagem e vamos vacinar".
Quando foi pressionado, o almirante deu um recado críptico: "Meu limite está muito longe ainda. Tenho 32 anos de treinamento militar".
Como tem mandato e dirige uma agência independente, não cabia na frigideira em que foi jogado o general Santos Cruz. O almirante preservou a credibilidade da Anvisa, evitou bate-bocas e provocações. Não se colocou como um ativo contraponto à disseminação de superstições.
Barra Torres, ao contrário do general Pazuello e do "coronel" Queiroga, não é candidato a nada. É raro que oficiais da Marinha se metam em política eleitoral.
Não se pode saber que rumo tomará a briga pela exigência do passaporte. Afinal, Bolsonaro e Queiroga produziram uma gambiarra. O governador João Doria venceu as batalhas da vacinação e da Coronavac, e é pré-candidato a presidente da República.
Uma coisa é certa, Bolsonaro não precisava encrencar com a Anvisa. Até porque, no atacado, a agência tem razões para se orgulhar de sua conduta durante a pandemia.
A financeira digital Nubank tornou-se o banco privado mais valioso da América Latina, superando as grandes casas brasileiras. Seu valor de mercado chegou a US$ 47,6 bilhões. Conseguiu isso em apenas oito anos de operações.
Oito anos parecem ser um tempo mágico para a destruição criadora do capitalismo no mercado financeiro de Pindorama. Fundado em 1943, o Bradesco tornou-se o maior banco privado do país em 1951. Como?
Amador Aguiar, seu patriarca, percebeu que os grão-senhores da banca não gostavam de gente com poucos sobrenomes e sapatos sujos. Diante disso, decidiu que as mesas dos gerentes ficariam na entrada das agências e os funcionários deveriam ajudar os clientes a preencher cheques. Em algumas cidades do Paraná, as agências do Bradesco chegavam antes da luz elétrica.
O Nubank e seus similares fazem coisa parecida no mundo digital de hoje, correndo atrás de uma fatia de consumidores deixada de lado pela grande banca. Facilitam os contatos com a clientela e abrem mão de taxas lucrativas, porém antipáticas.
A gigantesca United Health, dona da operadora brasileira Amil, livrou-se de sua carteira de planos de saúde individuais, com 370 mil clientes. Pagou R$ 3 bilhões a uma financeira para que ela ficasse com os contratos e suas obrigações.
Para a empresa, foi um bom negócio, porque a operação dava prejuízo. Só o tempo dirá o que acontecerá com os clientes.
Na melhor das hipóteses, fica tudo igual.
Na pior, os clientes vendidos, quando desatendidos, deverão recorrer à Justiça.
No século 19, a Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro pôs um anúncio nos jornais pedindo aos donos de pessoas escravizadas que parassem de depositar negros doentes em seus cemitérios.
Paulo Francis foi um jornalista brilhante e implicante. O caso de Daniel Ortega, que chegou ao poder na Nicarágua no século passado e está agora no quarto mandato, mostra que havia sabedoria na sua implicância.
Nos anos 1990 ele pegava no pé do guerrilheiro sandinista porque, numa passagem por Nova York, ele comprou óculos de grife.
Parecia ranhetice. Era premonição.
O guerrilheiro passou a usar lentes de contato, mas tem a mulher na Vice-Presidência e suas famílias estão bem postas na vida.
Mark Meadows, chefe de gabinete de Donald Trump revelou que o presidente-machão que desafiava o coronavírus foi ao debate com Joe Biden em outubro do ano passado tendo teste positivo para a Covid. Dias depois, levaram-no para o hospital com a taxa de oxigenação do sangue em 86%, indicando perigo para um homem de sua idade.
Melhorou a marca do tempo que se passa para que se conheça o estado de saúde de um presidente americano. A patranha segundo a qual estava tudo bem levou pouco mais de um ano para prevalecer.
Em 1963, depois de levar um tiro na cabeça, o presidente John Kennedy chegou morto ao hospital, mas esse detalhe levou tempo para ser aceito.
Em 1981 o presidente Ronald Reagan tomou um tiro no peito e sua turma espalhou que ele entrou no hospital fazendo piadas. Era mentira. Com um pulmão perfurado, tiraram-no do bico do urubu.