Postado às 07h57 | 26 Set 2021
Elio Gaspari
Em 1997, o deputado Ayres da Cunha, dono de uma operadora de planos de saúde e líder da bancada parlamentar que defendia os interesses do setor, disse que “na minha empresa, há um problema chamado idoso (...) Se tirássemos todos os idosos do meu plano, minha rentabilidade aumentaria muito”.
Nessa época, o médico Fernando Parrillo e seu irmão Eduardo entraram no mercado com a Prevent Senior. Ofereciam planos individuais a idosos e cobravam pouco. Parecia coisa de maluco, mas era a saudável demonstração da destruição criativa do capitalismo.
Enquanto o mercado operava sem controlar seus custos, a Prevent era fechada. Tinha seu plantel de médicos, seus laboratórios, seus hospitais e suas clínicas. Em 2017, o mercado teve autorização para aumentar suas mensalidades em 13,55%, e a Prevent subiu só 6,5%. Seu ticket médio estava em R$ 509. À época, já tinha 327 mil clientes.
Hoje, os clientes são 550 mil, com 10 mil funcionários, 3 mil médicos e 11 mil leitos hospitalares. Com esse cadastro, ela foi exposta na CPI da Covid. Meteu-se com a cloroquina, alterou prontuários, e seu diretor-executivo, Pedro Benedito Batista Junior, foi grampeado num telefonema durante o qual ameaçou um médico com a sutileza de um miliciano: “Você contou para sua esposa o que fez? (...) Você tem muito a perder, é a sua vida, é a sua família.”
O caso da Prevent deveria ser estudado em escolas de administração de empresas. Num mercado onde prevalece a promiscuidade entre maganos e agentes públicos, a Prevent atravessou a rua para escorregar em cachos de bananas. Não se conhecem os detalhes de suas relações com políticos e servidores, mas é possível mapear os dias em que ela tomou o caminho da roça.
Em março de 2020, quando a pandemia mal tinha chegado ao Brasil, a Prevent tinha 212 casos suspeitos de Covid, oito confirmados e 40 clientes internados. Sendo uma operadora que atendia idosos, isso era compreensível. No dia 17 de março, morreu um de seus clientes. Autoridades sanitárias puseram o nome da empresa na roda, e a Prevent honrou o público blindando-se em ameaçador silêncio.
No dia 1º de abril, o ministro Luiz Henrique Mandetta mostrou-se preocupado, porque 58% das mortes de São Paulo aconteceram em hospitais da Prevent. Fernando Parrillo, presidente da empresa, atirou de volta: “Falar de modelo de negócio com quem veio de cooperativa médica, que não paga imposto, é complicado”. Mandetta havia sido presidente da Unimed Campo Grande (MS).
Como a Prevent estava ameaçada de intervenção, Parrillo argumentou que esse assunto era da alçada da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Brasília entrava na dança.
Nesses dias, Jair Bolsonaro falava em “gripezinha“ e já havia proclamado sua fé na cloroquina, determinando ao “seu” Exército que passasse a produzi-la. Médicos renomados tomavam a medicação. Acreditar na cloroquina em março e abril de 2020 era um fato da vida. Nos meses seguintes, e até hoje, tornou-se um fato da morte. Bolsonaro continuou convicto, e a Prevent foi atrás.
Meteu-se numa pesquisa de fancaria exaltada publicamente pelo presidente. Passou a receitar cloroquina sem o conhecimento de pacientes. Manipulou documentos que resultaram na omissão da letalidade da Covid. Daí a ameaçar médicos, seria um passo, e ela o deu.
Havia uma diferença entre as pessoas que defendiam a cloroquina em março de 2020 e a obsessão bolsonariana. Num caso, havia alguma incerteza científica. No outro, havia o exclusivo propósito da instrumentação política. Passado mais de um ano, e meio milhão de mortos, Fernando Parrillo reconheceu para as repórteres Patrícia Pasquini e Suzana Singer que a pesquisa não era pesquisa, pois havia acontecido um “deslize”.
Admitiu, finalmente, que o famoso estudo da Prevent não mostrou que a cloroquina funcionava contra a Covid.
Se a Prevent tivesse feito isso há um ano, teria sido bom para muita gente, inclusive para ela, que agora terá que se explicar ao Ministério Público.
Começou na Califórnia o julgamento de Elizabeth Holmes, a genial criadora da Theranos, uma empresa que prometia dezenas de análises com apenas algumas gotas de sangue. Exames que poderiam custar US$ 876 sairiam por US$ 34, e as amostras poderiam ser colhidas até em supermercados. Em 2014, a Theranos valia US$ 10 bilhões, e no seu conselho sentavam-se os ex-secretários de Estado Henry Kissinger de George Shultz.
Aos 30 anos, Elizabeth Holmes parecia uma reedição de Steve Jobs e Mark Zuckerberg. Como eles, deixara a universidade para correr atrás de uma ideia. Como Jobs, usava sempre a mesma roupa preta. À época, o signatário escreveu sobre seu sucesso: “Uma bilionária por quem vale torcer”.
Em 2015, o repórter John Carreyrou começou a mostrar que era tudo mentira. Os organismos reguladores e o Ministério Público foram atrás, e em poucos meses o patrimônio da moça foi a zero. Em 2018, a empresa foi a pique.
O julgamento de Elizabeth Holmes levará algumas semanas. Ela arrisca pegar vinte anos de cadeia.
Não havendo dúvidas quanto à fraude, Holmes defende-se alegando que vivia uma relação abusiva com o companheiro, que presidia a Theranos.
Como ensinou Erle Stanley Gardner, o criador do detetive Perry Mason: depois que apareceu o clichê psicanalítico, o romance policial perdeu a graça.
Jair Bolsonaro e Paulo Guedes estiveram com o bilionário Sheldon Adelson, o rei de Las Vegas e Macau, em maio de 2018. Entraram no Copacabana Palace pela cozinha.
Em dezembro, o então prefeito do Rio defendeu a reabertura do jogo na região do Porto Maravilha.
Em maio de 2019, Bolsonaro disse que tinha uma ideia pela qual a União arrecadaria mais do que com a reforma da Previdência.
Um ano depois, numa reunião ministerial, Paulo Guedes defendeu a criação de resorts (pode me chamar de cassino).
Circula por Brasília uma proposta do Secretário de Avaliação, Planejamento, Energia e Loteria do ministério da Economia regulamentando o jogo eletrônico. Pretende regular e arrecadar com partidas de xadrez e pôquer. Quem costuma disputar partidas de xadrez a dinheiro e de pôquer à brinca leva um fim de semana em Las Vegas.
Adelson morreu em janeiro. Ele não tem nada a ver com que aconteceu depois disso.
Se Deus é brasileiro, na terça feira completa-se uma semana sem que o ministro da Saúde tenha disseminado batatadas.
Isso não acontecia desde a saída de Nelson Teich, em maio de 2020.
Os empreiteiros eram muitos mais escolados e espertos que os agrotrogloditas que podem vir a se sentir prestigiados cacifando versões botocudas do trumpismo eletrônico.
Os empreiteiros perderam dinheiro e negócios e estavam metidos em encrencas que nada tinham a ver com a política americana. Os agrotrogloditas estão se metendo, de cara lavada, com o Federal Bureau of Investigations. Com ele, o buraco é mais embaixo.