Postado às 05h34 | 30 Set 2020
Diário de Notícias, Lisboa, Portugal
Uma hora e meia de acusações, insultos e interrupções deixaram o moderador da Fox News, Chris Wallace, à beira de um ataque de nervos.
Ninguém esperava que os dois candidatos à presidência dos Estados Unidos, Donald Trump e Joe Biden, trocassem gentilezas no primeiro debate das eleições de 3 de novembro. Mas o que aconteceu ontem à noite em Cleveland, Ohio, foi pior do que qualquer comentador tinha previsto.
A primeira hora do debate, moderado pelo apresentador da Fox News Chris Wallace, foi marcada por insultos e interrupções constantes, com Donald Trump a falar constantemente por cima de Joe Biden.
"É quase impossível responder seja o que for com este palhaço", disse Joe Biden, numa das ocasiões em que se mostrou mais exasperado. Antes disso, já o candidato democrata tinha revirado os olhos e atirado "Vais-te calar, homem?", quando Trump, mais uma vez, falou por cima dele ao responder a uma pergunta. A dada altura, Chris Wallace levantou a voz e quase gritou, pedindo repetidamente a Donald Trump que deixasse o opositor falar. O presidente incumbente mostrou que o estilo agressivo que o levou à nomeação republicana e vitória sobre Hillary Clinton há quatros anos é o mesmo que irá ostentar neste ciclo eleitoral.
No entanto, os comentadores da CNN - que transmitiu o debate - consideraram preocupantes e mesmo perigosas as posições assumidas pelo presidente, nomeadamente as declarações feitas sobre milícias e supremacistas brancos.
Quando Chris Wallace perguntou a Donald Trump se condenava as ações de milicianos e supremacistas brancos, o presidente começou por dizer que sim mas acabou por hesitar e depois afirmar o que foi interpretado como o contrário.
"Proud Boys, afastem-se e esperem", disse, declarações que este grupo de extrema-direita imediatamente celebrou nas redes sociais, adornando os seus logotipos com as palavras do presidente.
A questão dos protestos pela violência policial foi uma das mais contenciosas no debate, com Trump a acusar Biden de querer abolir a polícia e Biden a chamar o presidente de "racista".
De resto, todos os tópicos importantes das eleições foram abordados: a vaga no Tribunal Supremo e a nomeação de Amy Coney Barrett, os 205 mil mortos pela pandemia de covid-19, a recessão económica e a polémica em torno dos votos por correspondência.
Trump foi, inclusivamente, obrigado a responder à notícia do jornal The New York Times, segundo a qual pagou apenas 750 dólares por ano em impostos federais sobre o rendimento desde o início da sua presidência. Antes disso, escreveu o jornal, com base na análise das declarações de impostos a que teve acesso, o presidente pagara zero nos anos anteriores, por declarar prejuízos substanciais nos seus negócios.
Nada disto é verdade, contestou Trump. "Paguei milhões em impostos", retorquiu o presidente, perante a insistência de Chris Wallace. Do seu pódio, Biden pediu repetidamente a Trump para mostrar as suas declarações de impostos. Tal como fez nos últimos quatro anos, o presidente argumentou que não pode fazê-lo porque as declarações estão a ser auditadas, mas que um dia todos "vão ver".
Com uma postura sobretudo de ataque, Donald Trump repetiu a fórmula dos seus comícios, atingindo todos os pontos-chave da plataforma de recandidatura. Voltou a dizer que fez mais em quatro anos que qualquer outro presidente da história e sobretudo "mais que Biden em 47 anos". E também voltou a colocar em dúvida a possibilidade de haver uma transição após 3 de novembro: segundo Trump, só perderá contra Biden se houver fraude. Foi nisso que se concentrou quando considerou que o voto por correspondência, que vai disparar nesta eleição, é "um desastre".
Apesar de ele próprio votar por via postal, Trump disse que este processo é "uma vergonha" porque há milhões de boletins a serem enviados automaticamente aos eleitores. O presidente, avisando que os resultados das eleições podem não ser conhecidos "durante meses", garantiu que foram encontrados boletins com voto nele no lixo e que há outros a serem vendidos ou deitados aos rios.
Biden contrariou este cenário catastrófico, dizendo que os militares votam por via postal desde o final da guerra civil e que o sistema funciona bem. Além disso, lembrou, há vários estados - incluindo republicanos - que têm eleições por correspondência sem problemas. Virando-se para a câmara e falando aos eleitores Biden garantir que se vencer, Trump vai ser forçado a deixar a Casa Branca. Um cenário em que o presidente incumbente se recusa a sair não é possível, garantiu.
"Sob este presidente, tornamo-nos mais fracos mais doentes, mais pobres, mais divididos e mais violentos", disse Biden.
"É o pior presidente que a América já teve", declarou o democrata.
Trump defendeu o seu direito de nomear mais um juiz para o lugar deixado vago pela morte de Ruth Bader Ginsburg, dizendo que tem "bastante tempo" para o fazer até mesmo depois da eleição a 3 de novembro. Biden, é claro, argumentou o contrário, dizendo que o eleitorado americano é que deve decidir quem irá preencher essa vaga.
É uma questão de fundo, até porque Trump disse que contará com o Supremo para "olhar para os boletins" no caso de haver suspeitas de manipulação. Não detalhou o que queria dizer com isso, mas sabemos que foi este tribunal que determinou a vitória de George W. Bush sobre Al Gore em 2000, parando as recontagens.
Sobre a pandemia de covid-19, que já matou quase 206 mil pessoas nos Estados Unidos, Trump deu nota máxima ao seu desempenho e comparou-o com aquilo que considerou ser "o péssimo trabalho" feito por Joe Biden aquando da pandemia de H1N1, em 2009.
Biden, na altura vice-presidente de Barack Obama, retorquiu que morreram 14 mil pessoas e não 205 mil. Acusou Trump de ter escondido a gravidade da situação e de, ao dia de hoje, continuar sem ter um plano. Os dois discutiram com veemência por causa da vacina, que Trump prometeu "para as próximas semanas" e que Biden contrapôs, citando os próprios diretores clínicos da administração, que só será distribuída em massa em meados de 2021.
Uma declaração (quase surpreendente) de Biden foi que, ao falar do seu plano para o combate às alterações climáticas e criação de uma economia verde, disse que "não apoia" o Green New Deal, o plano da ala progressista dos democratas. Em vez disso, Biden falou do seu plano, cujo foco é descarbonizar a economia criando "milhares de empregos" bons e bem pagos. Prometeu também levar os Estados Unidos de volta para o Acordo de Paris.
Sem intervalos, este debate de hora e meia foi considerado desastroso por comentadores e eleitores, pela acidez do embate e os insultos. Trump atacou o filho de Biden, Hunter, chamando-o drogado e corrupto, e Biden, que se exaltou na defesa do filho, teve vários momentos em que chamou "mentiroso" ao presidente.
Algumas questões de fundo ficaram pela rama ou sem resposta. Por exemplo, qual é o plano do presidente para substituir o Affordable Care Act ("Obamacare") e o quê, exatamente, defende Biden no que toca a aumentar os lugares no Tribunal Supremo e "encher" as fileiras do sistema judicial como Trump se gabou de fazer.
Há mais dois debates, um a 15 e outro a 22 de outubro, e a questão de qual será a postura possível de Joe Biden perante o "bullying" que já é conhecido a Donald Trump é pertinente. Se responder na mesma moeda, o candidato corre o risco de ser acusado de baixar o nível até à lama. Se não responder, parecerá fraco.
"Vocês têm o controlo para determinar no que é que este país se irá tornar", disse Biden, mais uma vez falando ao eleitorado. "Ou se serão mais quatro anos destas mentiras".
Trump, que está atrás nas sondagens e parece dançar com a perspetiva de violência caso perca, disse algo que pode ser terrivelmente presciente: "Isto não vai acabar bem".