Postado às 10h01 | 19 Out 2021
É compreensível o interesse político do senador Renan Calheiros, relator da CPI da Covid, em associar a palavra “genocídio” ao presidente Jair Bolsonaro. Ao tentar incluir o “genocídio de indígenas” entre os 11 tipos de crime que pretende atribuir a Bolsonaro em seu relatório, Renan faz eco ao grito que tomou conta das manifestações antibolsonaristas e desfralda uma bandeira que todos os adversários do presidente empunharão na campanha eleitoral de 2022.
Mas está errado.
Palavras não são inócuas — e “genocídio” é uma daquelas que devem ser usadas com a maior parcimônia, sob pena de banalizar o mais hediondo dos crimes. Genocídio não é sinônimo de extermínio em massa. Todas as definições do crime — a da convenção das Nações Unidas sobre genocídio, subscrita pelo Brasil em dezembro de 1948, a da lei 2.889 de outubro de 1956 e a do artigo 6º do Estatuto de Roma que criou o Tribunal Penal Internacional (TPI) — o caracterizam como uma série de atos cometidos “com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso”.
O termo foi cunhado pelo jurista Raphael Lemkin em 1944 para descrever o crime cometido pelos nazistas contra judeus e outras minorias enquanto grupos. Distinguia-se dos crimes contra a humanidade, que descreviam atrocidades cometidas contra os indivíduos (como tortura, escravidão, deportação, violência sexual etc.). Lemkin, que perdera 49 familiares no Holocausto, acreditava que aquele não era um evento único. Os armênios haviam passado por tragédia semelhante, e a legislação precisava ter instrumentos para evitar que os mesmos horrores se repetissem com outros grupos.
Apesar do esforço dele, e embora a palavra tenha sido citada pela primeira vez no Tribunal de Nuremberg, nenhum nazista foi condenado na ocasião por genocídio, apenas por crimes contra a humanidade. Genocídio sempre foi um crime difícil de comprovar nos tribunais, com raras condenações. Basta lembrar o Khmer Rouge, responsável pelo extermínio de 2 milhões no Camboja. Seus integrantes não foram condenados por genocídio, mas por crimes de guerra e contra a humanidade, pela dificuldade de demonstrar a intenção de exterminar um grupo específico. Em cortes internacionais, as condenações recentes mais relevantes foram contra o morticínio dos tutsis em Ruanda e o massacre de muçulmanos em Srebrenica, na Bósnia.
No caso dos indígenas brasileiros, parece claro que a omissão criminosa do governo durante a pandemia foi responsável por centenas de mortes, resultantes da falta de vacinas, da insistência em tratamentos ineficazes, da resistência a combater as invasões e o desmatamento que introduziram o vírus em suas comunidades. A ponto de o Supremo Tribunal Federal se vir compelido a intervir, obrigando o governo a tomar medidas emergenciais para proteger a população indígena.
Todos esses crimes devem obviamente ser punidos com o maior rigor possível. Mas nenhum deles foi cometido especificamente contra os indígenas. Nem está comprovado que o governo teve a “intenção de destruir, no todo ou em parte” qualquer grupo étnico específico. Não se trata, portanto, de genocídio. O abuso da palavra só contribui para esvaziar seu sentido, trivializando uma ocorrência repugnante e dificultando a prevenção de um crime que, oxalá, nenhum ser humano jamais deveria ter de enfrentar.