Postado às 04h04 | 26 Jul 2020
Editorial do Estado
O novo Jair Bolsonaro – personagem silencioso e contido que o presidente criou para sobreviver no cargo – não consegue esconder o velho e conhecido Jair Bolsonaro, perito em testar os limites das instituições republicanas e desafiar os padrões morais da civilização. Por trás da fachada de um presidente moderado e disposto até a negociar com parlamentares – quase um governante normal –, subsiste, pronto a emergir a qualquer momento, o político que fez do insulto, da irresponsabilidade e da truculência seu capital eleitoral. Não se deixa de ser Jair Bolsonaro da noite para o dia.
Por isso, não causou surpresa, apenas grande indignação, o comportamento do presidente na última quinta-feira, quando, mesmo sabendo que contraiu a covid-19, saiu a passear sem máscara de proteção e, irresponsavelmente, a conversar com funcionários do Palácio da Alvorada.
Como sabe hoje qualquer criança, quem está infectado pelo coronavírus deve se manter isolado, para não contaminar outras pessoas. Bolsonaro, contudo, não se considera obrigado a seguir determinações médicas em relação a uma doença que, desde sempre, menosprezou. Também não se sente forçado a respeitar a lei: no capítulo do Código Penal relativo à saúde pública, o artigo 267 tipifica como crime “causar epidemia mediante a propagação de germes patogênicos”, com pena de reclusão de até 15 anos de prisão, ou o dobro disso caso resulte em morte; já o artigo 268 informa que é crime “infringir determinação do poder público destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”, com pena de até um ano de prisão e multa.
Esse espantoso comportamento do presidente, permitindo-se cometer traquinagens com uma doença que já matou mais de 80 mil brasileiros, é, ao fim e ao cabo, o que tem inspirado o Ministério da Saúde a atuar de maneira absolutamente inadequada no enfrentamento da pandemia.
Conduzido por um general que se limita a cumprir as amalucadas ordens do presidente, o Ministério da Saúde, conforme mostrou recente relatório do Tribunal de Contas da União, não conseguiu gastar nem um terço do dinheiro alocado para a crise, deixou à míngua alguns dos Estados mais afetados e fracassou estrepitosamente na comunicação com os cidadãos e com os governos estaduais e municipais.
Além disso, atas das reuniões do Centro de Operações de Emergência (COE), estrutura do Ministério da Saúde que se destina a preparar a rede pública para enfrentar a pandemia, mostram que o governo foi alertado desde maio sobre a escassez de remédios essenciais para o tratamento de covid-19 – e só tomou alguma providência um mês depois disso. Nesse meio tempo, o governo impulsionou a produção e a distribuição de cloroquina, droga sem eficácia contra a covid-19, mas que ganhou status de prioridade máxima por ordem de Bolsonaro.
Enquanto hospitais enfrentam escassez de medicamentos importantes, o governo não sabe o que fazer com milhões de comprimidos de cloroquina que brotaram do entusiasmo juvenil do presidente – encantado com a possibilidade de oferecer aos brasileiros um elixir que lhes permitisse voltar ao trabalho, recuperando a economia e salvando sua popularidade.
Nada disso parece desanimar Bolsonaro – o verdadeiro, não o que tem se esforçado para parecer presidente. Há alguns dias, Bolsonaro exibiu a simpatizantes uma caixa de cloroquina como se fosse hóstia consagrada; pouco depois, deixou-se fotografar como uma criança buliçosa a apontar uma caixa de cloroquina contra uma das emas do Palácio da Alvorada, para vergonha dos brasileiros.
É fácil imaginar a frustração dos técnicos do Ministério da Saúde diante das travessuras do chefe de seu chefe. A despeito disso, como mostram os recém-revelados documentos do Centro de Operações de Emergência, esses profissionais não deixaram de fazer seu trabalho, advertindo o ministro da Saúde sobre os riscos de continuar a agir como Bolsonaro. Resta torcer para que não desistam, pois disso depende salvar as vidas que o presidente da República tanto despreza.