Postado às 04h36 | 15 Jul 2020
Editorial do Estado
Três dias depois do assassinato de George Floyd em Minneapolis, David Shor, um cientista político norte-americano de 28 anos, compartilhou em sua conta no Twitter o resumo de uma pesquisa de Omar Wasow, professor da Universidade de Princeton, comparando os efeitos de protestos violentos e pacíficos pelos direitos civis na década de 60. Segundo o estudo, as manifestações não violentas foram mais eficazes na promoção desses direitos.
A postagem de David Shor recebeu inúmeras críticas, sendo acusada de racismo e condescendência com a violência policial. Entre as reações, houve quem tenha exigido que o cientista político perdesse o emprego. De fato, dias depois, a empresa Civis Analytics demitiu David Shor.
Infelizmente, o caso acima é apenas mais um entre tantos outros. A chamada “cultura do cancelamento” tem levado a uma crescente onda de intolerância. Recentemente, mais de 150 professores, escritores e artistas denunciaram, em carta publicada na revista Harper's, o estreitamento do debate público em nome de uma suposta justiça social.
No caso do tuíte de David Shor, ainda que seu objetivo fosse tornar a causa mais eficaz, a mera reflexão sobre o comportamento dos ativistas despertou revolta e violência. Tal reação, seja qual for sua inspiração, afronta de forma inequívoca as liberdades e garantias individuais. Num Estado Democrático de Direito, cada um deve se sentir muito à vontade para dizer o que pensa, sem medo de ameaça ou represália. O que uma pessoa diz, por mais que contrarie determinados interesses ou pessoas, não é motivo para que ela seja perseguida por quem foi contrariado.
A liberdade de expressão inclui necessariamente o direito de discordar, questionar e também errar. Uma sociedade que só deixa falar quem se expressa em termos perfeitos, irrepreensíveis sob todos os pontos de vista, não é uma sociedade livre. Na verdade, este é o caminho dos regimes autoritários: condicionar a expressão de argumentos e ideias a determinados parâmetros de “bem e de virtude”.
Numa sociedade livre e plural, e aqui está um dos seus pontos fortes, não há que falar em erros de expressão. Não há o certo e o errado a respeito do modo de se expressar. Não há uma cartilha de expressões permitidas e outra de termos proibidos. Não há temas inquestionáveis. Não há assuntos imunes a críticas.
É preciso respeitar o outro. A lei proíbe, por exemplo, caluniar, injuriar ou difamar. Mas isso não autoriza perseguir pessoas ou grupos em função de suas falas incômodas, contramajoritárias ou mesmo desajeitadas. A liberdade de expressão deve ser levada a sério - ou então deve se admitir que não existe liberdade de expressão.
A chamada “cultura do cancelamento” vem se mostrando um tanto contraditória. Ao mesmo tempo que se observa um aumento da intolerância contra tudo o que não se enquadra em seus cânones - sejam eles progressistas ou reacionários, de esquerda ou de direita -, os mesmos grupos que desejam impor suas verdades almejam irrestrita tolerância com seus atos, sejam eles violentos ou pacíficos. Tudo estaria desculpado em função da motivação virtuosa de suas causas. Eventual questionamento de um ato de vandalismo, por exemplo, seria sinal inequívoco de preconceito ou artimanha para a manutenção do status quo, suscitando imediato linchamento em praça pública.
Não há liberdade onde impera a violência. Não há construção da justiça onde vige a lei do mais forte. E, nos dias de hoje, o mais forte pode ser, por exemplo, quem tem mais recursos econômicos ou quem ataca de forma mais fulminante nas redes sociais. Para que haja liberdade e também para que haja justiça, todos devem estar submetidos à lei. Esse é o grande aprendizado civilizatório que vem sendo esquecido nos tempos contemporâneos, como se fosse possível promover a igualdade social dando imunidade para que alguns persigam outros, numa espécie de justiça com as próprias mãos. Assim não se caminha para a frente. Quando se diminui a liberdade, pode-se ter a certeza de que se está na rota do retrocesso.