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Editorial do "El País": Democracia em suspense

Postado às 05h51 | 06 Nov 2020

Editorial do "El País"

A democracia norte-americana, a principal potência mundial, enfrenta um de seus momentos mais importantes desde a Segunda Guerra Mundial. Donald Trump e Joe Biden lutam voto a voto em uma eleição presidencial com potencial para deixar uma marca duradoura no futuro do país e das relações internacionais, em uma tensa apuração que mantém em suspenso uma sociedade muito dividida e o mundo inteiro. A eleição parece que vai se tornar o maior teste em décadas para a solidez dos equilíbrios institucionais norte-americanos ―admirados desde os tempos de Alexis de Tocqueville―, cada vez mais questionados hoje.

Estão em jogo interesses de importância quase incomensurável. Certamente, um novo mandato para o projeto Trump, para o seu nacional-populismo incendiário, a explosão da multipolaridade como base das relações internacionais, o negacionismo climático e a polarização social como tática política; ou um retorno, pelas mãos de Biden, a políticas moderadas de progresso, inclusão e relações internacionais construtivas. Mas, antes de qualquer coisa e principalmente, estão em jogo a união da sociedade norte-americana e a estabilidade de sua democracia, que encara o tremendo desafio de um processo eleitoral questionado sem nenhum argumento ou escrúpulo pelo líder instalado na Casa Branca.

A desfaçatez e a temeridade do presidente em se considerar vencedor ―"francamente, nós ganhamos estas eleições"– quando havia milhões de votos a apurar, ou em acusar os adversários de “tentarem roubar” as eleições sem prova alguma, evidencia a falta de qualquer sentido de Estado por parte do presidente. Trata-se de um comportamento que não atende aos mínimos padrões democráticos. No entanto, nem essas características, amplamente mostradas ao longo dos últimos quatro anos, nem a péssima gestão da pandemia erodiram o enorme empuxo de seu projeto radical entre os cidadãos norte-americanos. Ganhe quem for, o ponto de partida do novo período político é novamente um país fraturado, onde a preferência radical conta com a dedicação de metade dos eleitores. É uma mensagem que ultrapassa as fronteiras da potência americana e da qual tomam nota os nacional-populistas de outros países do Ocidente, bem como os regimes autoritários que gozam diante do espetáculo da autodegradação das democracias liberais.

Trump construiu conscientemente este momento de tensão máxima ao longo dos últimos meses, desacreditando seguidamente o processo eleitoral. A gasolina que agora acrescenta a esse fogo bem preparado tem um perigo enorme, considerando a tensão acumulada na sociedade norte-americana. Uma nação dividida ―em grande parte pela própria ação polarizadora do presidente―que assistiu nos últimos meses protestos maciços pela situação insustentável da violência policial contra a população negra e pela discriminação que essa violência evidencia. Uma sociedade marcada por profundas desigualdades, pela explosão das pontes de diálogo político e que, além disso, sofre o terrível ataque da pandemia, em boa medida devido à gestão temerária desta realizada pela atual Administração norte-americana. A incerteza destas horas obviamente não contribuirá para fechar estas divisões; provavelmente irá ampliá-las, o que desperta grandes preocupações em um país muito armado.

Muito provavelmente o papel decisivo agora será desempenhado pelos juízes. Trump já anunciou que recorrerá à Suprema Corte, bastião ultraconservador graças às nomeações que o presidente fez ao longo de seu mandato. Não é a primeira vez que os Estados Unidos vivenciam apurações disputadas. Podem ser lembradas as eleições do ano 2000, disputadas por George Bush Filho e Al Gore. O braço de ferro foi resolvido pela Suprema Corte, que suspendeu a apuração. A solução não esteve isenta de polêmica, mas foi acatada de maneira exemplar. Hoje a situação é diferente: um dos adversários está na Casa Branca e a fratura no seio da sociedade parece enorme.

A tentativa deliberada de dividir seus concidadãos para fins partidaristas será um dos principais capítulos do julgamento da história sobre Trump. No aspecto internacional, o veredito versará sobre a sistemática explosão ou erosão de alianças, tratados e instituições globais: da saída do acordo contra a mudança climática à erosão da OTAN; da quebra da relação histórica com a Europa ao rompimento de pactos comerciais ou do acordo nuclear com o Irã; do questionamento da ONU aos ataques à OMC e à OMS. Em um novo período de quatro anos, caberia esperar mais do mesmo; mais protecionismo, mais negacionismo climático, mais xenofobia, mais unilateralismo. Possivelmente em doses reforçadas em relação ao primeiro mandato, graças à valentia insuflada pela reeleição.

Mesmo que acabem ganhando a presidência, Biden e o Partido Democrata, por sua vez, terão de refletir sobre como o projeto moderado do candidato e sua coalizão de voto urbano e minorias não consegue uma vitória convincente mesmo contra um oponente tão extremo como Trump. O Partido Republicano, mais cedo ou mais tarde, deverá refletir sobre como o furacão Trump o deixou desfigurado e irreconhecível.

A incerteza obviamente também mantém a comunidade internacional no suspense. As democracias liberais desejam uma vitória de Biden; os regimes autoritários, os partidários do Brexit, o Israel de Netanyahu e os nacional-populistas de todo o mundo, que Trump seja o vencedor. O resultado final, evidentemente, mas também a maneira como a democracia norte-americana irá administrá-lo, deixará uma marca profunda. O momento é grave e muita coisa está em jogo: sete décadas de florescimento desses valores democrático-liberais estão ameaçados por algo mais do que nuvens escuras. Os Estados Unidos e o Ocidente precisam de um desenlace à altura de sua história e de seu futuro.

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