Postado às 04h27 | 08 Jun 2020
Editorial da Folha
Ao mandar sonegar ao público dados completos sobre mortes e casos do coronavírus, Jair Bolsonaro deu fim ao pouco que restava de seriedade na forma com que seu arremedo de governo trata a epidemia hoje fora de controle.
O painel diário do Ministério da Saúde sobre Covid-19 sofreu vários golpes nos últimos dias. Primeiro determinou-se que sua atualização ocorresse apenas após as 22h, convenientemente após o horário nobre dos telejornais.
Não funcionou. Ganharam mais destaque, em informes extraordinários, as lúgubres cifras que põem o Brasil em segunda posição mundial no número de infectados e ainda em terceiro lugar no de óbitos —apenas por subnotificação, pois é certo que a mortandade nacional já ultrapassou a do Reino Unido.
A página do ministério na rede foi então retirada do ar. Quando voltou, exibia unicamente os casos e mortes registrados no dia anterior. Omitiram-se totais que atestam a incompetência do governo em liderar o combate local à pandemia. Pior: sumiram vias de acesso à base de dados detalhados.
Bolsonaro vive em negação e parece acreditar ser possível, na era da informação, praticar censura canhestra ao estilo da ditadura militar que tanto incensa.
Sua obtusidade não chega a surpreender, diante de repetidas mostras de ignorância pessoal. Assustador é ver servidores públicos responsáveis nesse papel vergonhoso.
Por mais que o presidente se esforce por manietar a pasta da Saúde, da qual sacou dois ministros médicos para abandoná-la à interinidade de um general subserviente, a repartição ainda conta com técnicos competentes, encolhidos talvez pela militarização ao redor.
Os paus-mandados da Presidência no ministério anunciam uma manobra orwelliana na contagem de mortos. O pretexto delirante: governadores e prefeitos estariam a inflar estatísticas reunidas no banco de informações federal.
É a senha para enveredar na manipulação dos dados, ou ao menos para desacreditá-los. Afinal, basta um cabo ou um soldado proficiente em informática para recolher, somar e publicar o que o Palácio do Planalto quer esconder.
Há precedentes infelizes. Na década de 1980, a ditadura ergueu cortina de fumaça em torno de uma epidemia de meningite, por meio de censura à imprensa. A carência de informações precisas agravou o surto ao favorecer descuido e, assim, mortes evitáveis.
Jair Bolsonaro já incitava abertamente atitudes que espalham o flagelo da Covid-19. Em raro lampejo, pressente agora que o descaso cruel lhe impõe prejuízo eleitoral e teve o único reflexo de que é capaz: voltar as costas para o mundo, a verdade e a decência.