Postado às 04h52 | 17 Abr 2020
Editorial da Folha de São Paulo hoje, 17
Enquanto os bárbaros ameaçam arrombar o portão, as autoridades da cidade sitiada discutem o sexo dos anjos. A lamentável confusão que culminou na troca do ministro da Saúde na fase mais crítica da luta contra a epidemia do novo coronavírus faz evocar essa imagem.
O presidente da República, convertido por sua ignorância e pusilanimidade no maior estorvo à coordenação dos esforços sanitários, é o único responsável por ter produzido mais um ruído em torno do nada. Figura minúscula da política, insiste em desperdiçar energias de um país em emergência.
Em razão dessa conduta abstrusa de Jair Bolsonaro, uma camisa de força institucional foi sendo tecida em torno da Presidência. Governadores e prefeitos, gestores diretos da saúde pública, tiveram de tomar decisões onerosas para seus cidadãos protegendo-se de uma saraivada de críticas desonestas e desinformadas do chefe de Estado.
A ameaça constante de que decretos do Planalto viessem a se sobrepor às ordens de restrição de atividades das autoridades locais exigiu do Supremo Tribunal Federal a declaração, unânime entre os ministros, da ilegitimidade de atos unilaterais do Executivo federal.
Os presidentes e as maiorias da Câmara e do Senado armaram-se para rebater e rechaçar as barbaridades que pudessem surgir da famigerada caneta de Jair Bolsonaro.
O próprio Ministério da Saúde teve de aprender a operar num ambiente hostil, em que o presidente da República contrariava, com gestos e falas, a normativas da pasta, que não diferem em nada das que prevalecem em todo o planeta.
A muito custo, reitere-se, foi erguida essa barreira de contenção ao poder de destruição do chefe do governo, em meio à batalha sem precedentes contra a pandemia. Por isso, não será uma troca de ministro que colocará tudo a perder.
A opção pelo oncologista Nelson Teich tem a vantagem de eliminar nomes exóticos e obscurantistas que eram cogitados. Mas o desconhecimento, pelo novo ministro, do que seja a complexa máquina da saúde pública no Brasil vai cobrar um preço de aprendizagem em que o país não precisaria incorrer.
Defender, como Teich, a massificação dos testes é correto, porém insuficiente. A questão é como fazer um país que testa pouquíssimo passar a processar milhões dessas avaliações em poucos meses.
E como seu ministério vai ajudar agora, emergencialmente, os hospitais cujas UTIs estão se exaurindo?
Essa não é uma questão teórica. Brasileiros vão morrer desassistidos na fila da saúde pública se ela não for respondida com ações tempestivas e muito bem planejadas.
Os desafios do novo ministro são concretos e prementes. Tudo o que ele não tem é mais tempo a perder.