Postado às 05h58 | 13 Abr 2020
El País
Não faz muito tempo, o presidente português disse que seu país era a Suécia do sul. Ainda que o popular Marcelo Rebelo de Sousa tenha se referido na época às conquistas diplomáticas, a definição poderia ser estendida hoje à luta contra o coronavírus. Portugal contorna a pandemia com um índice de casos por milhão de habitantes que é a metade do sueco. Embora o mundo continue boquiaberto olhando para o norte, britânicos, suíços, holandeses e alemães poderiam aprender alguma coisa mais ao sul, com o latino Portugal, onde o coronavírus avança sob controle.
EUA superam Itália em número de mortos, com Nova York no epicentro da pandemiO cordeirinho que ainda exibe cordão umbilical não sabe, mas nasceu com um estrela. Graças a estes tempos de calamidade, não acabará em alguma churrasqueira nesta Páscoa. “Foi parido esta manhã”, confirma o pastor Horácio. O animal quase não pode se manter de pé ao lado dos outros filhotes, alguns dias mais velhos que ele, todos indultados pelo coronavírus. “Hoje é este bicho e não há demanda, amanhã será a seca e não haverá pasto. Em 10 anos não haverá nada nem ninguém por aqui.” Horácio cria as ovelhas numa aldeia do Alentejo, uma região do tamanho da Catalunha onde o coronavírus não conseguiu matar. Um caso excepcional dentro do exemplo já excepcional que é Portugal.
Em 2 de março foram descobertos os primeiros casos positivos em Portugal, praticamente o último país infectado da Europa Ocidental, e por causa de importações da Itália e da Espanha. Embora a autoridade sanitária tivesse considerado a Covid-19 uma “gripe forte” dias antes, as previsões mais pessimistas apontavam para um milhão de contagiados, 10% da população do país. Quarenta dias depois, existem apenas 16.000 casos e 470 mortes. Numa guerra sem fim, os profissionais de saúde portugueses abrem mão das medalhas. “Não somos melhores que os italianos nem que os espanhóis”, afirma o pneumologista Filipe Froes. “São etapas diferentes. Estamos três semanas atrás da Itália e uma ou duas atrás da Espanha. É cedo para avaliar Portugal.”
Até agora, os dados portugueses são muito mais encorajadores que os da França, Reino Unido, Alemanha, Holanda, Bélgica e Suíça, estereótipos da suposta eficácia, disciplina e racionalidade do norte da Europa.
“Todos os países aplicam as mesmas medidas, mas nós tivemos mais tempo de prepará-las”, diz Froes. “No início, a atividade do vírus foi mais brusca na Itália e na Espanha, agindo em mais focos geográficos e em instituições sensíveis, como hospitais e lares de idosos.”
Em 13 de março, o primeiro-ministro português, António Costa, decretou o estado de alerta e o fechamento dos colégios. Tomou a medida ao mesmo tempo em que a Espanha, com a diferença de que esta registrava 6.000 contágios e 132 mortos, e Portugal apenas 112 positivos, nenhum mortal. Naquele mesmo dia, foi detectado o primeiro caso de contágio local, um dado importante para frear a expansão do vírus, segundo a epidemiologista Inês Fronteira. Do primeiro caso importado ao primeiro entre locais, 11 dias haviam passado, ao contrário da Itália e da Espanha, que demoraram 23 e 28 dias, respectivamente, para localizá-los. Um estudo da professora de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa indica que a reprodução do vírus em Portugal, nos primeiros 25 dias da epidemia, foi por isso a mais baixa da Europa, inclusive inferior às cifras da Coreia do Sul e da China.
Apesar da cautela dos especialistas portugueses, faz uma semana que os contágios duplicam a cada oito ou nove dias. “É verdade”, reconhece o pneumologista Froes, “que na fase de desenvolvimento do contágio ativamos a rede de atenção primária. Com isso, conseguimos uma resposta domiciliar ao paciente para seguir o tratamento em casa e uma melhor resposta ao doente grave nos hospitais”. Hoje, 82% dos contagiados continuam a recuperação em seus domicílios.
Os hospitais estão longe do colapso, e os de campanha nem foram capacitados. João Mota, chefe de proteção civil de Grândola, transformou um espaço de feiras num hospital temporário. “No momento ele não é necessário [há quatro casos na localidade], mas está preparado para que outros hospitais transfiram para cá pacientes com doenças não contagiosas”, afirma. Os 233 internados nas UTIs do país utilizam seis ventiladores por cabeça, e nesta semana chegarão outros tantos para completar um total nacional de 3.000 aparelhos.
A epidemia se concentra na Grande Lisboa e na região do Porto, com 90% dos casos positivos. No extremo oposto está a terra de Horácio, o Alentejo, com 0,5%. Com 33% da superfície do país continental, a região tem apenas 23 habitantes por quilômetro quadrado, como na Suécia. “A densidade populacional é um fator fundamental numa expansão epidemiológica”, diz a demógrafa Maria Filomena Mendes, da Universidade de Évora.
O coronavírus, longe de distanciar instituições e partidos, aproximou-os. O presidente, Rebelo de Sousa (Partido Social-Democrata, PSD), e o primeiro-ministro, Costa (Partido Socialista, PS), se complementam e publicamente escondem suas discrepâncias. Não há provas de que a unidade institucional cure epidemias, mas sim de que as brigas políticas estimulam o mal-estar da sociedade. Nas redes sociais portuguesas, é impossível encontrar vídeos de cidadãos insultando ou raivosos (tampouco engraçados). Nas ruas, a polícia não controla, “sensibiliza”; não multa, “recomenda”. Em abril, somente deteve – no sentido mais leve do termo – 74 pessoas por violar o confinamento. Empresas e lojas permanecem abertas – com a exceção de bares e restaurantes – enquanto o presidente já anuncia que o estado de emergência continuará até maio.
Seja pelos médicos, pelos políticos ou pelo povo, Portugal está lidando com a situação melhor do que muitos países, embora ela não seja a ideal. Faltam testes, máscaras e gel desinfetante. Os planos de prevenção se esqueceram dos lares de idosos, como reconhece o pneumologista Froes. “Tínhamos que ter sido mais rigorosos na avaliação do risco nessas instituições.”
Aos 70 anos, o pastor Horácio não tem medo do coronavírus. “Lutei na guerra de Moçambique, depois fui a Angola, depois ao Iraque... Se ele vier, aqui estamos. Você acha que o vírus se lembrará de nós?”.