Postado às 04h42 | 14 Out 2020
Heloisa Mendonça
A crise gerada pela pandemia do coronavírus obrigou a maior parte dos países a ampliar as despesas diante da urgência exigidas pelas áreas da saúde e da economia. No Brasil não foi diferente: mais de 600 bilhões de reais já foram destinados ao combate à crise sanitária, entre recursos para o auxílio emergencial, programas de crédito às empresas, apoio a Estados e municípios e repasses na área de saúde. Esse aumento ―exatamente no momento em que a arrecadação está em queda, devido à menor atividade econômica― levou o Instituto de Finanças Internacionais (IIF, na sigla em inglês) a decretar o Brasil como o campeão em déficit entre os países emergentes no relatório deste mês, embora não detalhe quais são os resultados das demais nações neste momento. Mas os dados de abril do instituto já revelavam essa diferença do Brasil em relação a outros emergentes (veja quadro a seguir).
A medir por resultados passados, é fato que a conta está pesada para o Governo. Nos primeiros sete meses do ano, esse rombo atingiu cerca de 9% do Produto Interno Bruto (PIB) e a projeção é que o déficit chegue a cerca 12,5% até o fim do ano. Em 2019, ele foi de 0,9%. Em um país que já vive há seis anos com as contas no vermelho, e que deve ver a economia despencar cerca de 5% do PIB em 2020, a situação é vista com preocupação caso um plano efetivo para resolver a situação fiscal não seja encaminhado.
Na avaliação de economistas ouvidos pelo EL PAÍS, as medidas adotadas até agora para aliviar o rombo são apenas tapa-buracos, mas não garantem a saúde das contas públicas. De acordo com Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, o quadro fiscal é o mais desafiador que o país já enfrentou. Felipe Salto, diretor-executivo do IFI, adverte que o Governo de Jair Bolsonaro precisa dar uma sinalização clara de como vai ser o financiamento das políticas públicas no ano que vem e qual será o papel do teto de gastos ― que proíbe que as despesas cresçam em ritmo superior à inflação. “Ele será cumprido ou gatilhos serão acionados? O projeto de lei orçamentária anual também é incompleto porque não contempla o programa de transferência de renda anunciado. Haverá medidas de aumento de receitas para financiar uma parte do déficit? São muitas perguntas sem respostas”, diz.
Diante de uma crise sanitária de duração ainda indeterminada, o presidente Jair Bolsonaro tem vivido um impasse com sua equipe econômica para desenhar o futuro do auxílio emergencial, direcionado aos mais vulneráveis e afetados pela pandemia. A ajuda chegou a quase metade dos lares brasileiros, em junho, e tem segurado, segundo especialistas, um crescimento maior da taxa de desemprego. A grande questão é de onde sairá o dinheiro para bancar a continuidade do benefício sem furar o teto de gastos.
Há duas semanas, uma nova proposta foi anunciada pelo Governo. Batizado de Renda Cidadã, o programa seria um substituto do Bolsa Família, e contaria com novos recursos vindos do dinheiro reservado para o pagamento de precatórios e ainda uma parcela do Fundo de Manutenção de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), o principal mecanismo de financiamento da educação. A proposta encontra, no entanto, resistência no Congresso Nacional e já sofreu críticas de membros do Tribunal de Contas da União. “A apresentação do Renda Cidadã pegou mal. Falar que querem adiar uma despesa obrigatória [os precatórios] é uma contabilidade criativa”, diz Salto. O novo programa será incluindo na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) emergencial e do pacto federativo, que fazem parte de um pacote do ajuste fiscal. “Essas emendas ficaram meio dormindo desde o ano passado e só agora foram ressuscitadas. Mas nem o relatório das PECs foram apresentados num momento em que surgiram novas demandas de gastos. O mercado está apreensivo e a curva de juros está aumentando com essa falta de rumo, de um plano concreto a dois meses do fim do ano”, completa.
De acordo com o Instituto Fiscal do Senado, a dívida pública subirá 20,3 pontos do PIB em 2020, mas poderá crescer ainda mais, a depender das políticas adotadas até o fim de 2020. O risco de financiamento da dívida é controlado, mas existe e tem aumentado, segundo a instituição. Na prática, com os gastos superando as receitas, o Governo precisa tomar recursos emprestados, aumentando o endividamento público. Mas o Instituto de Finanças Internacionais aponta que apesar do avanço do rombo das contas públicas brasileira, a emissão de títulos ―os papéis que o Tesouro lança constantemente no mercado para pegar dinheiro junto a investidores e pagar sua dívida, em troca de retornos futuros superiores― tem sido moderada.
Isso porque o país tem optado por utilizar parte de suas reservas internacionais, hoje no valor de 354,6 bilhões de dólares, e o lucro cambial do Banco Central nessa operação ― decorrente da alta de 35,6% do dólar no primeiro semestre ― para reforçar o caixa do Tesouro Nacional. Como a variação da moeda norte-americana corrige as reservas internacionais brasileiras, o ganho cambial dispara em momentos de desvalorização do real. Em agosto, o BC foi autorizado a transferir um total de 325 bilhões de reais a titulo de lucro cambial.
O repasse já foi adotado em outras ocasiões pelo Governo brasileiro, mas não de maneira tão significativa. No fim de 2019, uma nova lei mudou o relacionamento entre Tesouro e Banco Central, mas ainda permite a transferência “quando severas restrições nas condições de liquidez afetarem de forma significativa o seu refinanciamento (da dívida)”.
Se por um lado, ao utilizar esse recurso o país financia parte do déficit sem ter que emitir dívida, a operação aumenta o dinheiro em circulação e leva o BC a “enxugar essa liquidez” para controlar a inflação mediante vendas de títulos públicos, com o compromisso de recomprá-lo com juros mais baixos, mas em um prazo curto de tempo. “O esquema reduz o custo do empréstimo para o setor público, mas também reduz o vencimento médio da dívida pública”, aponta o IIF. Segundo economistas ouvidos pelo EL PAÍS, a dívida a curto prazo tem mais risco de não ser paga dada as incertezas econômicas, o que pode fazer o Governo empurrar a dívida, encarecendo o passivo.
Na avaliação de Alberto Ramos, diretor de pesquisa econômica para América Latina do Goldman Sachs, não há como escapar da dívida neste período de pandemia. “Há diferentes alternativas para enfrentar o rombo. Se o país utiliza o saldo de conta corrente gasta-se um ativo. Caso use o lucro cambial, o BC precisa esterilizar vendendo títulos. Se uma pessoa vende os quadros da casa ou se endivida no cartão de crédito, de qualquer forma, ela está mais pobre”, explica.
O Brasil deve seguir utilizando, segundo Ramos, parte do dinheiro acumulado na conta única antes de recorrer de forma mais forte ao mercado, que hoje cobra taxas de juros mais elevadas para emprestar ao Governo, em meio ao cenário de incertezas trazidas pela covid-19, principalmente em papéis com prazo mais longo de vencimento.
Para o economista, o que é arriscado atualmente é a própria estratégia fiscal do país e não necessariamente a forma como ele está pagando a dívida. “Não há dúvidas que todos os países precisavam de um choque durante a pandemia. Mas o preço a pagar por essa política não será igual entre eles. Se todo mundo decidir correr uma maratona, o cara que já corria 10 quilômetros tem muito mais vantagem do que outro que era sedentário”, diz.
Ramos ressalta que o terreno das contas públicas no Brasil já era totalmente deteriorado: seis anos de déficit e endividamento alto. Com o aumento de gastos para proteger a população e empresas acima da média, a economia brasileira migrou para um cenário ainda mais vulnerável. A estimativa é que a dívida salte de 75,8% do PIB, patamar do ano passado, para mais de 90% ao final de 2020, com rumo aos 100% nos próximos anos. “O Brasil já estava pior dentre os emergentes e agora ficou ainda pior. Não há muita perspectiva de uma melhora no curto prazo”.
André Perfeito, economista-chefe da Necton, vê a utilização da transferência do BC como uma forma de tapar buracos, mas ressalta que ela não resolve o problema. “O mercado financeiro está nervoso porque o Governo ainda não encaminhou um plano efetivo para resolver a situação fiscal. Estamos em um momento de tic-tac de uma bomba. O semestre acabando e não sabemos o que acontecerá com o Orçamento do ano que vem e nem como será bancado o novo programa social".
Na avaliação da IIF, todos os gastos em ações emergenciais no Brasil terão de ser interrompidos e mais cortes devem ser feitos para que a meta fiscal em 2021 seja cumprida, uma “tarefa difícil” em um quadro de economia fraca e forte pressão para expandir gastos com programas sociais de modo permanente, como o Renda Cidadã. “Cortes substanciais seriam necessários para além de 2021”, alerta a entidade.