Postado às 10h55 | 19 Abr 2020
Paulo Coelho
Escritor acredita que não voltaremos a ser os mesmos após a pandemia, uma vez que objetivos efêmeros deram lugar à urgência de sobreviver. Neste estado de incerteza e solidão, resta-nos valorizar as relações pessoais e aceitar os mistérios da vida.
“Senhor meu Deus, eu não tenho ideia para onde estou indo, não vejo o caminho adiante”, diz o monge trapista Thomas Merton, em um livro em que reflete sobre a solidão.
E, de repente, o mundo inteiro parece estar sendo forçado a pensar nessas palavras. Por mais que queiramos um rumo, uma meta, ou mesmo um guia que nos leve por caminhos desconhecidos, se desejamos conhecer nosso futuro, é necessário aceitar essa realidade.
Achávamos que tínhamos todas as respostas, e as perguntas mudaram. Nos sentíamos seguros em nossas bolhas e zonas de conforto, e o inimigo invisível penetrou-as. E nos forçou a encarar um de nossos maiores fantasmas: o isolamento, a solidão. Sim, temos muitos amigos, mas eles não devem se aproximar, e assim precisa ser feito.
Entretanto, seria a solidão algo tão ruim assim? A solidão não é a ausência de companhia, mas o momento em que nossa alma tem a liberdade de conversar conosco e nos ajudar a decidir sobre nossas vidas.
Quem nunca está só já não conhece mais a si mesmo. E quem não conhece a si mesmo passa a temer o vazio, mas o vazio não existe. Um mundo gigantesco se esconde em nossa alma, esperando para ser descoberto. Está ali, com sua força intacta, mas é tão novo e tão poderoso que temos medo de aceitar sua existência.
Aceitemos este encontro. O destino está batendo na porta de todos no planeta, como aquele anjo que veio durante as pragas do Egito e entrou nas casas que não tinham sido marcadas, dizimando os primogênitos.
Não podemos convencê-lo de que estamos bem, de que nosso universo está em ordem, de que nunca fizemos mal a ninguém: se ele achar que não aprendemos nada, entrará e acabará com todos ali.
Nunca mais voltaremos a ser os mesmos. Claro que os “influencers” na internet, os que se apegam ao que viviam no Réveillon de 2020 em suas lanchas e sítios cercados de luxo, com seguranças e fotos sorridentes no Instagram, os que buscavam mostrar superioridade exibindo roupas de marca, mesmo que não tivessem sequer dinheiro para alimentar-se, todos esses ainda continuarão a querer fazer renascer das cinzas o que não tem mais espaço na Terra.
Mas isso jamais tornará a acontecer. O mundo agora se concentra em uma única coisa: todo o nosso engenho e a nossa arte para que possamos sobreviver. E quando o perigo passar, que leve consigo os preconceitos, a arrogância, a cegueira que foi, aos poucos, nos impedindo de ver o irmão ou a irmã ao nosso lado.
Os negacionistas negam. Os religiosos fanáticos creem na punição divina. Os ecologistas culpam o aquecimento climático. Mas temos mesmo uma resposta?
Em um de meus livros, “O Vencedor Está Só”, ironizava: “Salvar o planeta? Como podemos ser tão arrogantes? O planeta é, foi e sempre será mais forte que nós. Não podemos destruí-lo; se ultrapassarmos determinada linha, ele se encarregará de apagar-nos de sua memória e continuará a girar em torno do Sol”.
Resta-nos aprender a usar esta pandemia, a refletir sobre nossa vida até agora. Voltarmos a valorizar as pequenas coisas, porque mesmo que as autoridades digam que isso vai passar, ninguém sabe ao certo quando ou se a pandemia será substituída por algo pior.
É hora de dar importância ao convívio familiar. Ter suficiente humildade para aceitar que o universo é governado por leis que não conseguimos entender, e o mistério da vida vale muitíssimo mais que a soma dos componentes que compõem o nosso corpo (oxigênio, água, carbono etc.), cujo valor, se comprados na farmácia, não ultrapassaria R$ 5.000.
Valorizar agora, mais do que nunca, o amor daqueles que nos querem bem. Ajudar, sempre que possível, aqueles que não têm a quem recorrer.
Na noite dos tempos, os seres humanos viviam em cavernas —com um líder sábio, um xamã que conseguia ler os sinais dos tempos e as propriedades medicinais das plantas, artistas que pintavam as paredes, contadores de história que falavam de épocas ainda mais antigas, com animais mitológicos.
Cada um tinha seu papel. Se eu vivesse nessa época, com certeza seria o contador de histórias. E como nós voltamos, de certa maneira, a dar importância aos que nos cercam, não posso deixar de contar uma delas aqui.
Era uma vez um rei em cujo reino todos eram felizes, embora seus vizinhos vivessem em estado de guerra constante. Aquilo o incomodava muito, e ele chamou seu conselheiro.
“Por que somos o único país em paz?”, indagou. “Porque os outros não estão contentes consigo mesmos. Fazem tudo sem o menor entusiasmo, reclamam o tempo todo, e se agridem com um ódio jamais visto. Brigam entre si porque têm opiniões diferentes. Volta e meia surge alguém querendo a coroa, e a única possibilidade de conseguir isso é difamando quem está no trono”, respondeu o conselheiro.
“É perigoso viver cercado de tanto ódio. Hoje eles se atacam entre si e amanhã terminarão nos atacando, mesmo que não tenham motivo para isso. Como poderemos ensiná-los a importância de viver em paz?”, refletiu o rei.
Era muito difícil, porque cada um desses reinos falava uma língua diferente. Desolado, sem ter como responder à própria pergunta, o rei passou a noite inteira em claro. A rainha quis saber o que estava acontecendo. Assim que ele explicou o motivo de sua tristeza, ela lhe deu uma ideia.
“Isso”, respondeu o rei. No dia seguinte, mandou um arauto chamar todos os habitantes de seu reino e os reuniu na frente do palácio.
“Preciso da ajuda de vocês. A pessoa que criar a melhor pintura sobre a importância da paz receberá dez moedas de ouro.” Todos se colocaram a trabalhar febrilmente —não apenas pelo prêmio, mas porque respeitavam e admiravam o rei.
No final do ano, a sala principal do castelo estava cheia de pinturas de todos os tipos, criadas por todas as pessoas —o monge, o padeiro, o melhor aluno da escola, o pior da escola (que via ali uma chance de redimir-se diante dos colegas), o ferreiro, os agricultores, e assim por diante.
O rei passou dias para escolher o vencedor. Até que chegou a uma conclusão, convocou de novo todos os seus súditos, e mandou colocar na sala principal dois quadros cobertos por panos.
“Obrigado pelo esforço de cada um”, disse. “Tudo o que produziram foi extraordinário, e não há nada melhor que a arte para criar pontes entre reinos que são tão diferentes entre si. Gostaria que todos fossem premiados, mas é impossível. Portanto, escolhi dois trabalhos como finalistas.”
“Eis o segundo lugar”, anunciou então. O rei retirou o pano que cobria a pintura à sua esquerda. Mostrava uma das paisagens mais belas que seus súditos podiam imaginar —um vale em que as montanhas estavam cobertas de vegetação, um pôr do sol belíssimo, um lago de águas azuis e peixes saltitantes, enquanto no céu passeavam aves com plumas de diversas cores. Em torno do lago, as famílias conversavam entre si e os meninos brincavam.
Todos aplaudiram e ficaram aguardando o vencedor, já que dificilmente alguém conseguiria retratar um cenário mais pacífico.
Mas o rei continuou: “Eu teria dado o primeiro prêmio a esse quadro que acabo de mostrar, se não fosse por outra pintura que refletisse melhor o significado da paz”. Retirou o pano do quadro vencedor, e a audiência, em uníssono, exclamou “ohhh!”, horrorizada pela escolha.
“O rei está louco!”, gritou uma mulher. “Não entende nada!”, bradou o padeiro. “Sinceramente, Vossa Majestade acha que a paz é isto?”, indagou o astrólogo real. “Devia ter deixado a escolha para gente mais capaz.”
O quadro mostrava um céu com nuvens negras, raios, rochedos escarpados, um vento que havia arrancado as folhas de todas as árvores —menos as de uma, no alto de uma rocha.
Depois que o burburinho na sala cessou, o rei voltou a tomar a palavra. “Imagino que pensam que não entendo nada de arte, e muito menos de paz. Quando vi pela primeira vez este quadro, também fiquei horrorizado. Quem foi o louco do artista que enviou isso para o concurso? Foi então que reparei com cuidado na árvore em cima do rochedo. Ali, em um ramo, está um ninho. E no ninho, um pequeno pássaro.”
E prosseguiu o rei: “O pássaro está sorrindo porque sua mãe acabou de chegar e está lhe dando o que comer. Quando você tem uma família, é capaz de enfrentar tudo com alegria, lutar por ela e alimentá-la, não importa o que está ocorrendo ao seu redor. A paz em seu coração lhe dá as forças de que necessita para enfrentar todas as tempestades e superar todos os obstáculos”.
E o rei mandou o quadro viajar pelos reinos à sua volta. Claro, sempre alguém precisava explicar seu significado, mas aos poucos todos foram entendendo a importância da paz, passaram a colaborar entre si, e o mundo nunca mais assistiu às atrocidades até então frequentes.
Sempre haverá uma mão para nos guiar quando estivermos nos desviando de nosso caminho —tudo o que precisamos fazer é prestar atenção aos sinais que nos cercam. E, note-se, não estou falando de Deus, e sim de mulheres e homens de boa vontade que, no momento certo, aparecem em nossas vidas e na vida da comunidade, como médicos e enfermeiros, entre muitos outros a que só agora prestamos atenção, que só agora percebemos ser tão importantes em nossas vidas.
Prestemos atenção, como fez o rei da história, a esses sinais. Que também possamos aparecer na vida dos outros que precisam de nós, sem perguntar muito, apenas para dividir, generosamente com eles, a nossa condição humana.
Comecei este artigo com um trecho de Thomas Merton e encerro com palavras do mesmo poema:
“Não conheço bem a mim mesmo, / E o fato de achar que estou cumprindo Tua vontade / não me garante que estou fazendo o que devo. / Mas acredito que meu desejo de agradar-Te Te deixa contente. / Espero que este desejo esteja presente em tudo que eu faça. / E que eu sempre consiga manter Teu amor em meu coração. / Se eu continuar assim, Tu me guiarás pelo caminho certo / apesar das minhas dúvidas”. (Estado)