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“Chance de morrer de Covid-19 é de 1 em 10.000 em jovens. Problema é se 100 milhões pegarem ao mesmo tempo”

Postado às 06h41 | 03 Abr 2020

El País

Enquanto o Brasil já soma, nesta quarta-feira, 240 mortos por Covid-19 e 6.836 infectados, com uma taxa de letalidade de 3,5%, e o presidente Jair Bolsonaro questiona a gravidade da pandemia e espalha notícias falsas, autoridades de saúde de todo o mundo continuam defendendo a importância do isolamento social para frear a curva de contágio por coronavírus. É o caso do infectologista Alexandre Cunha, médico do Hospital Sírio-Libanês e referência na área no Brasil.

Desde a chegada do coronavírus ao Brasil, o Hospital Sírio-Libanês adotou um protocolo de vigilância e segurança para afastar, por 14 dias, profissionais de qualquer área que apresentem sintomas (mesmo leves) de gripe ou compatíveis com a Covid-19. Desde fevereiro, 100 profissionais do Hospital entraram em quarentena. “A Covid-19 não é uma doença grave, do ponto de vista da saúde individual. Se uma pessoa jovem pega, a chance de falecer é de 1 para 10.000. Mesmo nas pessoas mais velhas, a chance de morte é de 1 para 1000″, diz Cunha. O problema, segundo o infectologista, é que se novos casos não forem evitados e se o país registrar um contágio massivo, não haverá leitos para tratar todos os pacientes. "Nesse cenário, aqueles que ficarem em estado grave vão morrer por falta de assistência. E as pessoas que tiverem complicações por diabetes, infarto ou derrame, por exemplo, também vão morrer por falta de leitos”, explica Cunha sobre o efeito dominó da crise sanitária. O médico insiste na importância de diminuir a velocidade de contágio para não sobrecarregar o sistema de saúde brasileiro.

Pergunta. O que o senhor tem visto na linha de frente do combate ao coronavírus?

Resposta. A grande maioria dos casos que a gente vê são casos suspeitos, com sintomas respiratórios leves. Essa é a apresentação mais comum da doença. Dentre esses, existem alguns casos graves, mas são a minoria. Tanto no consultório quanto nos hospitais, recebemos mais casos leves, que vão para casa e que, muitas vezes, não são confirmados devido à pouca disponibilidade de testes laboratoriais. Acabamos testando só os casos mais graves.

P. De que maneira o déficit de testes impactará o resultado final dessa pandemia no Brasil?

R. Os testes são muito importantes para as estatísticas, para que tenhamos dados reais sobre a disseminação do vírus, a velocidade dessa disseminação e aspectos como a mortalidade da doença. Isso dificulta bastante o manejo epidemiológico.

P. A população brasileira é mais jovem do que a de países como Itália ou Espanha, mas o Brasil gasta menos em saúde do que essas nações. Qual o resultado dessa matemática?

R. O fato de termos uma população mais jovem do que esses países europeus é uma vantagem, já que o maior coeficiente de letalidade se dá entre os idosos. Na Itália, por exemplo, onde os dados estão mais consolidados, a idade média das vítimas fatais é de 80 anos. Por outro lado, nosso sistema de saúde, que por um lado tem uma proporção razoável do número de leitos de UTI por habitantes, por outro, é muito desigual. E 80% da nossa população só tem acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS). Isso é problemático quando vemos que já enfrentamos uma superlotação nesse sistema.

P. Sabe-se que os idosos estão entre os grupos de risco, mas o que explica os óbitos de pessoas jovens e sem doenças prévias, como já acontece no Brasil e em outros países?

R. O que acontece é que, em toda conta, temos que ver o numerador e o denominador. Em Nova York, por exemplo, grande parte dos casos graves foram de pacientes jovens. Mas isso é só o numerador, o denominador equivale a quantas pessoas pegaram o coronavírus. E essa maioria é de jovens mesmo, porque eles são a maioria da população. Então, se a gente tem 1.000 jovens infectados e três idosos, mesmo que a mortalidade dos idosos seja muito maior, teremos mais mortes de jovens por números absolutos. Hipoteticamente falando, se a mortalidade em jovens for de 1% e, em idosos, for de 10%, mas tivermos 1.000 jovens infectados, morrerão 10 jovens e um idoso. O que temos que entender é que os jovens são mais infectados, porque, além de serem maioria da população, os idosos se recolhem mais.

P. Isso significa que nas próximas semanas, quando se espera o crescimento da curva de contágio no Brasil, teremos mais mortes de jovens?

R. Sim. É importante notar que isso é devido ao número enorme de casos. Quando falamos que no Brasil registraram-se 1.000 casos e já tem três mortes, por exemplo, falamos apenas de casos confirmados. O número real de casos pode ser de 10.000, 20.000 casos...sempre é um número muito maior, então não dá para calcular a letalidade.

P. O SUS tem uma grande capilaridade e um sistema de vigilância que funciona. O senhor acredita que o sistema de saúde brasileiro está pronto para enfrentar uma crise como essa?

R. Isso depende do tamanho da crise. O Brasil realmente tem um sistema de vigilância epidemiológica muito bom, mas o sistema de assistência médica é muito heterogêneo. Enquanto temos hospitais de alta complexidade de excelência, em grandes capitais, temos pequenos municípios que sequer têm um pequeno hospital. Nesses casos, o paciente precisa ser deslocado de uma cidade a outra. Então, essa falta de homogeneidade complica a ação diante de uma crise como essa. Se tivermos muitos casos em um curto período de tempo, isso levará à superlotação das unidades públicas de saúde, e aí não há jeito de conter a epidemia.

P. A província de Hubei, na China, marco zero do coronavírus, que adotou medidas muito restritivas de isolamento social e chegou a usar agentes de segurança para tirar as pessoas da rua, ficou dois meses em quarentena. O que podemos esperar do Brasil, dado o cenário atual?

R. Embora Hubei tenha adotado essas medidas drásticas, elas foram implantadas tardiamente, quando a epidemia já estava em franca evolução. Os demais países, tendo a China como exemplo, puderam se antecipar. Aqui no Brasil, tem cidades que, mesmo sem ter casos confirmados ou com poucos casos, já adotaram políticas de isolamento social. Se mantivermos essas medidas, não teremos um quadro tão grave como o da China ou da Itália.

P. Como tem sido feito o procedimento de testagem nos hospitais brasileiros? Em quanto tempo, em média, o paciente tem o resultado?

R. É importante lembrar que o resultado, em si, não altera o tratamento do paciente. Uma vez que não existe um tratamento específico para a Covid-19, o que se pode fazer é adotar medidas de suporte respiratório. A única alteração é nas medidas de isolamento, para a conter a disseminação. Sobre o teste, o RT-PCR, a reação da cadeia polimerase em tempo real, que é o padrão para diagnóstico do coronavírus, tem alguns problemas: ele pode dar até 30% de falso negativo. E a maioria dos hospitais, mesmo os privados, está restringindo os testes para pacientes graves internados, porque, se fizermos a testagem nos pacientes ambulatoriais, os exames se esgotarão muito rapidamente. O exame demora entre dois e quatro dias, dependendo do centro de saúde [há relatos de demora de até sete dias, em locais mais sobrecarregados].

P. De que maneira pessoas com comorbidades, como doenças crônicas, têm maior risco em relação à Covid-19 do que as demais?

R. O risco de contrair a doença depende só do grau de isolamento social. O que acontece é que essas pessoas têm maior risco de desenvolver formas graves da doença caso a contraiam. Ou seja, um idoso, um imunossuprimido ou um jovem que tenha boa imunidade têm a mesma chance de contrair o vírus, se se expuserem da mesma maneira. Mas idosos, hipertensos, diabéticos, cardiopatas, pneumopatas e imunossuprimidos, por exemplo, têm o risco de desenvolver pneumonias mais graves e maior risco de óbito.

P. De que forma o coronavírus ataca os pulmões?

R. No início, ele causa sintomas respiratórios leves e, depois, causa uma pneumonia, uma inflamação no pulmão, e essa pneumonia pode ser extensa o suficiente para impedir a troca de oxigênio, levando o paciente à insuficiência respiratória e, muitas vezes, com necessidade de intubação para ventilação mecânica através de aparelhos.

P. Qual a real gravidade da Covid-19?

R. Covid-19 não é uma doença grave, do ponto de vista da saúde individual. Se uma pessoa jovem pega, a chance de falecer é de 1 para 10.000. Mesmo nas pessoas mais velhas, a chance de morte é de 1 para 1.000. Mas o problema não é a probabilidade de as pessoas morrerem individualmente. O problema é que se 100 milhões de brasileiros pegarem a doença, não há leito para todas elas, e aqueles pacientes que ficarem em estado grave vão morrer por falta de assistência. E as pessoas que tiverem complicações por diabetes, infarto ou derrame, por exemplo, também vão morrer por falta de leitos.

P. O Ministério da Saúde informou no dia 25 de março que o Brasil enfrentará uma “tempestade perfeita”, com a coincidência do pico de contágio por coronavírus, com o pico da influenza e da dengue. De que forma isso irá agravar o combate à pandemia?

R. Todo ano temos epidemias de dengue bastante significativas, o que sobrecarrega nosso sistema de saúde. A influenza varia a cada ano, dependendo da cobertura vacinal, que este ano deve ser bastante extensa, mas tem anos em que a vacina funciona melhor do que outras, por peculiaridades biológicas, e agora temos essa nova pandemia. Essa superposição de epidemias pode esgotar muito mais rapidamente os recursos de saúde do que em países europeus que não têm doenças como a dengue, por exemplo.

P. O Ministério da Saúde também anunciou que vai usar hidroxocloroquina, um medicamento ainda em fase de testes, para tratar casos graves de Covid-19. Como o senhor avalia essa medida?

R. Eu e outros profissionais acreditamos que esse uso não deveria ser feito. Quando um medicamento não está aprovado em estudos bem desenhados, quando se trata de um medicamento experimental, como é a hidroxocloroquina, a gente pode fazer o chamado uso compassivo, que é quando o paciente tem uma doença muito grave e com altíssima mortalidade, o que nos permite lançar mão de terapias que não sabemos se funcionam. A questão é que esse não é o caso da Covid-19. Olhando os números, vemos que 99% dos casos têm boa evolução sem uso de nenhuma medicação específica. E você submeter 99 pessoas ao uso de uma medicação —que pode trazer efeitos colaterais— para, quem sabe, ajudar uma pessoa, é um benefício absolutamente teórico para uma minoria absoluta, com um risco palpável para uma maioria absoluta. Essa é minha primeira crítica ao uso da hidroxocloroquina antes de estudos mais sérios. Os estudos existentes têm um péssimo desenho metodológico. Espero que eu esteja errado, mas, muito provavelmente, os estudos que virão mostrarão que essa substância não tem nenhuma eficácia.

O que acontece no final, com a prescrição massiva de hidroxocloroquina, ou azitromicina, que já está sendo associada à hidroxocloroquina, ou imunoglobulina, ou medicações para HIV, é que elas acabam por aumentar a toxicidade do vírus e agravar o quadro de pacientes que talvez tivessem melhor prognóstico sem elas. Porque esses pacientes recebem muito volume de medicação, o que pode encharcar os pulmões… É que nós médicos temos o costume de fazer coisas para ajudar o paciente, seja dar um remédio, fazer uma cirurgia, resolver as coisas. E a sensação de impotência diante de uma doença que pode ser grave e a gente não pode fazer nada nos leva a fazer alguma coisa, mesmo que essa coisa não seja benéfica. Só que, às vezes, a melhor coisa a fazer é não fazer nada. Várias vezes isso acontece na Medicina. O Covid-19 tem causado uma sensação muito ruim nos médicos de estarmos só observando o curso da doença. Mas é o melhor que podemos fazer, por enquanto.

P. E o que dizer os anúncios de cura de pacientes com Covid-19, se não há tratamentos específicos nem uma vacina? Essa cura corresponde, então, ao processo de evolução da própria doença?

R. Isso, é uma cura espontânea. É como a dengue, que não tem um remédio específico. As pessoas pegam dengue, a maioria sofre um bocado no curso da doença, mas ela passa. Uma minoria absoluta vai a óbito. O paciente curado é aquele que passou pela Covid-19 e se restabeleceu. Esses casos de cura, por exemplo, aconteceram sem o uso de cloroquina ou hidroxocloroquina. Acontece que agora dirão que as pessoas estão sendo curadas porque tomaram esses medicamentos, o que não será verdade. Os pacientes vão se curar exatamente como os outros. Essa é a preocupação que devemos ter para fazer estudos clínicos mais bem desenhados, em que metade dos pacientes tome a droga e a outra metade, não. Assim, poderemos analisar, no final, os benefícios dessa substância. A Sociedade Brasileira de Infectologia e o Hospital das Clínicas da USP já se pronunciaram veementemente contra a prescrição de cloroquina fora do protocolo de pesquisa clínica, à despeito da liberação da droga pelo Ministério da Saúde.

P. Quais são os riscos da cloroquina?

R. Tanto a hidroxocloroquina quanto a azitromicina, que está sendo usada em associação, são medicações seguras, já que são usadas para malárialúpus e outras doenças. Acontece que o que é seguro para um paciente ambulatorial pode não ser para alguém que já esteja em estado crítico, na UTI. O principal efeito colateral dessas medicações é a arritmia cardíaca, o que pode acontecer no caso de pacientes com Covid-19, já que essa doença causa miocardite, uma inflamação do músculo do coração. Essa inflamação pode levar, por si só, a arritmias cardíacas, então, a associação de dois medicamentos que podem potencializar essa arritmia pode ser pior. Essa medicação precisa ser diluída em soro, ou seja, vai aumentar a quantidade de soro que o paciente recebe. Ele já tem uma inflamação nos pulmões, e essa sobrecarga de volume pode piorar o quadro pulmonar. A gente precisa de muito cuidado com a empolgação e com a prescrição de um medicamento que não tem comprovação científica alguma só pela sensação de que temos que fazer algo. Repito: muitas vezes, fazer nada é melhor do que adotar uma medida que faça mal. Todo mundo está achando que podemos ficar tranquilos, porque descobrimos a cura da Covid-19, mas isso é uma falácia. A hidroxocloroquina não é bala mágica contra o coronavírus.

P. Há, de fato, a possibilidade de uma vacina contra o coronavírus?

R. Essa é uma questão bastante delicada, porque, por exemplo, quando o H1N1 surgiu em 2009, já tínhamos tecnologia para vacinas contra influenza e só tivemos que adaptá-la. Não temos vacina em humanos para nenhum tipo de coronavírus. Dessa maneira, o procedimento de desenvolvimento da vacina e dos testes em humanos demora mais um ano, o que não é tempo suficiente para pensar nisso como alternativa de contenção dessa pandemia.

 

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