Postado às 07h59 | 13 Nov 2020
Rogério Werneck
Ainda é cedo para vislumbrar com nitidez todos os complexos desdobramentos da vitória de Joe Biden. Mas, mundo afora, governos de nações democráticas festejam, aliviados, a perspectiva de voltar a contar, em Washington, com um presidente que possa restaurar o papel crucial dos EUA na cooperação multilateral que se faz necessária para a boa governança do planeta. Do combate à pandemia ao aquecimento global. Dos esforços concertados de recuperação da economia mundial ao controle eficaz da proliferação nuclear.
Em Brasília, contudo, o governo não esconde sua contrariedade. Não bastasse já se ter permitido indecoroso alinhamento explícito ao candidato republicano, durante a campanha presidencial nos EUA, o Planalto fechou-se em copas. Impôs ao governo silêncio fechado sobre o resultado da eleição. E proibiu que órgãos governamentais divulguem projeções econômicas que levem em conta a vitória do candidato democrata. Até o início da tarde de ontem, Bolsonaro ainda não se dignara a reconhecer a vitória de Joe Biden. Mais constrangedor, impossível.
Não há como subestimar as dificuldades que, tudo indica, o Planalto continuará a enfrentar para lidar com o desfecho da eleição norte-americana. É mais do que sabido que, por anos, Bolsonaro viu em Trump o modelo a seguir, copiando-lhe inclusive a forma peculiar com que transformou o dia a dia do seu governo num interminável reality show, focado no acirramento da polarização política.
Ao macaquear Trump, Bolsonaro viu-se, com frequência, mais à vontade para insistir em posições indefensáveis que desavisadamente adotara. Sem ir mais longe, basta ter em conta quão mais difícil lhe teria sido se agarrar ao negacionismo e ao charlatanismo, diante do avassalador avanço da pandemia, se nesse papel não se percebesse em fantasioso dueto com Donald Trump.
A criação por Biden de uma força-tarefa de combate à covid-19, que voltará a pautar a política de saúde pública norte-americana por recomendações científicas, prenuncia que a postura obscurantista que Bolsonaro se permitiu adotar no enfrentamento da pandemia está fadada a se tornar cada vez mais isolada e desgastante.
O Planalto bem sabe, também, que a eleição de Biden tornará o desajuizado descaso do governo com a devastação da Amazônia bem mais custoso do que já vem sendo. Ao desgaste que essa postura irresponsável vem trazendo às relações do Brasil com a Comunidade Europeia deverão se somar inevitáveis atritos com os EUA, fomentados por uma aliança tácita – à primeira vista estranha, e por isso mesmo temível – da ala ambientalista do Partido Democrata com o poderoso lobby agrícola norte-americano.
O que está em jogo é o promissor projeto de expansão das exportações brasileiras de produtos agropecuários. E, como já perceberam os segmentos mais lúcidos do agronegócio no País, para que possa fazer face às pressões conjuntas dos EUA e da Europa por políticas mais consequentes de preservação da Amazônia, o governo terá de dar demonstrações inequívocas de que sua postura mudou. E de que, na condução da política ambiental, já não haverá mais espaço para figuras como Ricardo Salles.
Com o Itamaraty sob a égide das caricatas pregações de Ernesto Araújo contra instituições multilaterais, o governo encontra-se completamente desequipado para lidar com a revitalização do multilateralismo que a eleição de Joe Biden promete. A defesa eficaz dos interesses brasileiros nas negociações que deverão ter lugar nessas instituições depende de um esforço abrangente de retripulação do Ministério das Relações Exteriores, que Bolsonaro dificilmente estará disposto a patrocinar.
Sem Trump, Bolsonaro se verá privado de uma caixa de ressonância importante para o discurso inconsequente e amalucado que se permitiu manter em ampla gama de questões. Terá menos espaço para demagogia e populismo. E estará bem menos à vontade para dar vazão à sua irrefreável fanfarronice mitômana. Mas não se iludam. Mesmo sem Trump, Bolsonaro não deixará de ser o que sempre foi.