Postado às 06h58 | 09 Dez 2020
Estado
Samuel Wainer era um homem de compleição física frágil, mas com grande ambição pessoal. Jornalista, morreu em setembro de 1980, vítima de problemas pulmonares resultantes de uma tuberculose mal curada e décadas fumando sem cessar. Mas deixou um dos principais legados da imprensa brasileira, fundando publicações que se tornaram históricas como a revista Diretrizes e o jornal Última Hora. Mais: manteve relações intrincadas com três presidentes da República (Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart), que lhe permitiram participar ativamente da história do Brasil.
Foi um homem que sempre lutou por seus ideais, ainda que conquistados por meios ilícitos – esse é o personagem de Samuel Wainer – O Homem que Estava Lá (Companhia das Letras), biografia de fôlego escrita por Karla Monteiro, desde já um dos principais lançamentos do ano. Para isso, ela entrevistou cerca de 100 pessoas, além de ter analisado milhares de documentos, entre cartas íntimas, negociação de dívidas e as fitas que deram origem ao livro Minha Razão de Viver – Memória de um Repórter (Record), autobiografia em que o jornalista deixou preparada pouco antes de morrer, mas com diversas lacunas.
A polêmica sempre rondou a trajetória de Wainer, desde a data precisa de seu nascimento (1912 ou 1914), até o local: ele sempre sustentou que veio ao mundo em uma rua do bairro do Bom Retiro, em São Paulo, o que lhe garantia juridicamente o direito de ser dono de um jornal – mas Karla comprovou que Wainer nasceu na Bessarábia (hoje Moldávia), filho de família de judeus.
Determinado em seus objetivos, Wainer ganhou notoriedade nos anos 1940, quando criou a revista Diretrizes, publicação que contava com uma redação estrelada: Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz eram apenas alguns dos nomes. Dali, saltou para os Diários Associados, a maior cadeia de comunicações do Brasil de então, comandada por Assis Chateaubriand.
Foi lá que, em 1949, Wainer publicou seu maior furo, uma entrevista com Getúlio Vargas que, desde que fora deposto do poder, em 1945, vivia recolhido em seu sítio, no Rio Grande do Sul. A reportagem (que não foi casual, como se acreditava) anunciou, em primeira mão, o retorno do velho caudilho ao cenário político.
Eleito em 1950, Vargas facilitou que Wainer fundasse o jornal Última Hora, que revolucionou a imprensa nacional, desde com um moderno projeto gráfico até a cobertura de esportes e causas sociais. De forte cunho nacionalista e trabalhista, também era o órgão que, de longe, melhor pagava os jornalistas.
A aliança com Vargas foi um dos mais fortes motivos que provocaram o rompimento da amizade de Wainer com Carlos Lacerda que, à frente da Tribuna da Imprensa, tornou-se seu mais ferrenho adversário, questionando, por exemplo, sua nacionalidade e, portanto, a legitimidade de comandar um jornal.
Para Wainer, órgãos de imprensa deveriam apoiar uma causa política, o que o levou a ficar ao lado de Kubitschek e, principalmente, de Jango, até seu último dia como presidente antes de ser deposto pelo golpe militar, em 1964. Opções, aliás, eram constantes em sua trajetória, marcada por enfrentamentos contra inimigos poderosos ao mesmo tempo em que criou intimidade com generais, ministros e empresários, sempre tirando proveito quando possível.
Ao mesmo tempo, revelou-se um notável jornalista, em busca da notícia exclusiva, o que o levou a cobrir, por exemplo, o Julgamento de Nuremberg, entre 1945 e 46, que condenou líderes nazistas, além de conseguir entrevistas exclusivas, como com o marechal Josip Broz Tito, que foi presidente da Iugoslávia entre 1953 e 1980, quando morreu.
Além de desembaraçar a intrincada teia política que marca a trajetória de Wainer, Karla Monteiro se ocupa também de uma não menos agitada vida amorosa. Oficialmente, foram dois casamentos – primeiro com Bluma, que o flagrou com outra mulher na cama. O contra-ataque veio em seguida, quando ela o traiu com seu amigo e cronista Rubem Braga, chegando a abortar.
A outra grande paixão foi com a modelo e jornalista Danuza Leão, com quem teve três filhos. Já a lista extraconjugal foi extensa, com Wainer namorando mulheres bonitas e, em geral, mais novas que ele – como a atriz Joana Fomm. “O Samuel é um Macunaíma. Um Macunaíma judeu, versão semita do Macunaíma”, como afirmou Francisco de Assis Barbosa, que foi repórter da Última Hora, ressaltando o herói sem caráter de Mário de Andrade.
“Samuel tinha cabeça de rico numa existência de pobre. Não se importava com dinheiro. Nunca lhe passava pela ideia comprar um imóvel ou investir em bens pessoais para garantir o futuro. Só queria fazer revista. Não uma revista qualquer, mas a mais espetacular. Sempre a megalomania. ‘Tinta nas veias’, como bem dizia (o repórter) Joel Silveira”, escreve Karla, que respondeu, por e-mail, as seguintes questões.
O subtítulo da biografia, “O Homem que Estava Lá”, faz lembrar a vinheta da revista “Manchete” (“Aconteceu? Virou Manchete”). Brincadeira à parte, como se explica o agudo senso de oportunidade de Samuel Wainer?
Exatamente: Aconteceu, Virou Manchete. Boa lembrança. Aliás Samuel Wainer acreditava piamente que o fato só se tornava fato se havia um jornalista para testemunhar – e contar depois. Do contrário, não aconteceu. E também sua carreira indica que sabia bem que o fato depende de quem conta. Isenção? A fake news da imprensa.
Agora... Como se explica o agudo senso de oportunidade de Samuel Wainer? Acho que pela inteligência realmente aguda, rápida, desprovida de preconceitos. Ele não tinha preconceitos. Tinha metas. E também não tinha piedade. Piedade aqui como sinônimo da moral burguesa, judaico-cristã. Na sua coluna d’O Globo, Nelson Motta escreveu algo que repito aqui: “(...) Mas gostava acima de tudo do jornal e, em nome dele, sacrificou valores materiais e morais em suas relações com políticos e empresários. Afinal, a causa era nobre, os fins justificavam os meios, só custava algum cinismo”.
A rápida compreensão de Wainer da relação da imprensa com o poder político foi um dos fatores de seu sucesso como jornalista?
A formação ideológica de Samuel Wainer tem raiz funda na esquerda judaica dos anos 30 e 40. Seu irmão mais velho, Arthur Wainer, foi um dos fundadores no Brasil do Poale Zion (Trabalhadores de Sion), movimento sionista-trabalhista, cuja premissa se aproximava mais do trabalhismo inglês do que do comunismo russo. Na juventude, ele acompanhou a guerra ideológica travada no seio da comunidade judaica do Rio de Janeiro, em que diferentes grupos disputavam corações e mentes usando como arma jornais. Cada corrente – sionistas-trabalhistas, sionistas gerais, comunistas – tinha o seu jornal.
Ali, acredito, já entendeu a força da imprensa. Como diria Assis Chateaubriand, quem quiser ter voz que funde o seu jornal. Samuel Wainer era um jornalista – e um homem – que tinha lado. Sempre nacionalista e trabalhista. Ao longo da carreira, então, foi se associando aos poderosos que compartilhavam o mesmo lado. Para mim, isto é muito claro na trajetória dele: formação ideológica retilínea – e, dai em diante, os fins justificavam os meios na guerra de “fatos”.
Qual era a habilidade de Wainer para driblar e conter o antissemitismo brasileiro? A busca pela proximidade com o poder seria uma delas?
Em A Origem do Totalitarismo, Hannah Arendt fala sobre o desejo de pertencimento e reconhecimento dos judeus imigrantes. Como o sentimento do escorraçado está presente, latente nos judeus de primeira geração. Ao contar a sua história na autobiografia, Samuel Wainer apresenta como álibi o fato de nunca ter enriquecido, de ter aplicado tudo nos jornais, na obra. Ele diz que se tivesse amealhado fortuna seria só mais um judeu rico. Daí pode-se concluir como carregava na alma as cicatrizes do antissemitismo.
Na minha opinião a busca da proximidade com o poder vem deste desejo de pertencimento. De sair da condição de pária. E de ter voz. Também enxergo o nacionalismo dele, de certa forma, como autoafirmação da condição de brasileiro. Jorge Amado dizia que Samuel era mais brasileiro do que todo mundo.
A conflituosa relação política entre Wainer e Carlos Lacerda pode ser comparada ao dualismo político de hoje, entre esquerda de direita?
Num artigo na revista Quatro Cinco Um, o veterano Cláudio Bojunga escreveu que houve um tempo em que bastava mencionar Samuel Wainer e Carlos Lacerda nos bares para identificar a esquerda e a direita na mesa. Os primeiros viam em Lacerda a mistura de Catão e McCarthy. Conservadores reduziam Samuel a sanguessuga do poder: “Idealizar ou pichar ainda hoje personagens tão complexos é o mesmo que embalsamar o maniqueísmo panfletário da Guerra Fria”. Dito isto, acho, sim, que é possível traçar diversos paralelos entre o tempo que coube a Samuel Wainer e Carlos Lacerda.
E o tempo hoje. Na briga dos dois, está, por exemplo, os meandros, as entrelinhas, as maneiras como as forças se organizam e desorganizam a democracia brasileira. E, sobretudo, escancara o papel da imprensa como força política. Como parte e não fiscal do poder.
Eu diria que os governos FHC e Lula foram exceção num país que sempre esteve polarizado. Ao longo da vida, Samuel Wainer atravessou golpes, tentativas de golpe, contragolpes, duas ditaduras, o Estado Novo e a ditadura militar. Sua biografia cobre a história política do século 20. Para mim, foi impactante entender como o Brasil repete padrões. Quando você acredita que vai, volta. Mas nunca houve um Bolsonaro. Sobre a dualidade, termino com uma história divertida: certa feita, de passagem pelo Brasil, Henry Kissinger perguntou a Samuel Wainer, intrigado, como podia tanto ele como Lacerda se dizerem de centro.
Ao que Wainer respondeu: “Estamos ambos no centro, só que de costas um para o outro”. “O Brasil era um país terrivelmente polarizado, mas tanto gente de esquerda e de direita continuava a apresentar-se como ocupantes do centro, uma peculiaridade tropical”, explicaria mais tarde.
A agressividade que marcou a relação profissional entre ambos, cada um em seu jornal, revela a importância que cada um reconhecia do outro. O que Wainer mais admirava em Lacerda e o que mais desprezava?
Samuel Wainer e Carlos Lacerda foram inimigos íntimos, um conhecia muito bem a ambição do outro. Acho que nem Lacerda acreditava que Samuel era um corrupto e nem Samuel acreditava que Lacerda era a encarnação do mal, o “doido do Lavradio”. Arrisco dizer que Samuel admirava a inteligência de Lacerda, mas desprezava sua demagogia – ou hipocrisia de bastião da moral. Como diria Antônio Maria, ninguém segurava a sua alma de tira.
O desmentido sobre o casual encontro entre Wainer e Getúlio Vargas, em 1949, como um dos vários pontos altos do livro. Você alimentava essa suspeita ou se surpreendeu com a descoberta?
Alguns autores, como Lira Neto e Fernando Morais, já haviam levantado a lebre. Mas eu me surpreendi, sim. Lendo a correspondência entre Getúlio e Alzira Vargas, durante os anos em que o ex-ditador estivera “exilado” em São Borja, eu me deparei com a sequência que derruba o mito do furo ao acaso. Então a história do repórter que foi ao Sul fazer uma reportagem sobre o trigo e voltara com uma entrevista inédita não passava de “pós-verdade”, “fakenews”... Mas aí, analisando mais detidamente o caso, acho esta passagem muito reveladora da personalidade de Samuel Wainer.
Nunca perdia cavalo celado. Ao sair do Rio de Janeiro no meio do carnaval, sem avisar ninguém, como escreveu Alzira Vargas numa das cartas ao pai, deu a volta. Pegou Getúlio Vargas de toalha, antes que este tivesse sido avisado pela filha da entrevista combinada. E fez uma entrevista espontânea, viva... foi um sucesso absoluto, repercutindo inclusive na imprensa internacional. A melhor parte vem depois, no entanto. Uma das frases mais famosas de Getúlio Vargas, “Eu voltarei, mas não como líder de partidos, e sim como líder das massas”, é de Samuel Wainer.
Até que ponto a alusão feita por Paulo Francis, que comparou Wainer a Gatsby, é verdadeira?
Paulo Francis acertou na mosca, eu acho. Samuel Wainer é um “Gatsby” brasileiro, de certa forma. Assim como o personagem de F. Scott Fitzgerald, a pobreza extrema o tornou voraz por possibilidades, por se diferenciar, se destacar no meio. Viveu em constante, ininterrupto tumulto, seguindo o instinto em direção ao futuro glorioso. Desde cedo, acreditou que poderia se reinventar no mundo. Poderia ascender, intrujar-se nas altas rodas. Acredito, inclusive, que o próprio Samuel Wainer tinha consciência do papel de invasor.
Aliás, representava com maestria este papel, como um “Gatsby”: misterioso, sofisticado, charmoso, sedutor, boêmio. Baby Bocaiúva contava que os íntimos brincavam: “filho do trovão com o raio, sem pai nem mãe, capaz das coisas mais terríveis e das mais nobres”. Sobretudo, assim como o Gatsby de Fitzgerald, Samuel nunca comprou a moral burguesa, judaico cristã, entendedor das sutilezas da moralidade endinheirada. Citando o Francis, viveu “O Deleite do Gatsby”.
O processo de expansão do Última Hora, como abertura de sucursais em diversas capitais, também representou sua condenação de morte?
Sem dúvida. Quanto mais crescia, mais atiçava a ira dos inimigos. E Samuel Wainer teve contra ele os piores inimigos. Na minha opinião, sua maior contribuição para a democracia brasileira foi introduzir na grande imprensa, majoritariamente liberal e conservadora, um jornal trabalhista e nacionalista.
Com isto, desafiou dois pilares do jornalismo. Primeiro, o lugar de fala neutro, assumindo a linha editorial getulista. Segundo, desafiou o discurso único, a história única, para usar esta expressão da escritora nigeriana Chimamanda, quando ela fala da hegemonia da literatura europeia. Ao se colocar como voz dissonante, comprou a briga. Basta dizer que a Ultima Hora foi o único jornal a ficar contra as forças civis e militares que dariam o golpe de 1964.
Wainer tinha um raro faro político, antevendo jogadas e atitudes como poucos. Por que, então, insistiu na tese da legalidade, apoiando João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros, mesmo diante da crescente insatisfação dos militares?
Voltamos ao compromisso ideológico de Samuel Wainer. João Goulart representava a continuidade de Getúlio Vargas, o herdeiro do getulismo. Àquela altura a bola estava em campo: ou era lutar pela legalidade – a posse de Jango - ou entregar o ouro. A Campanha da Legalidade adiou o golpe de 1964 em três anos – aliás, assim como o suicídio de Getúlio, evitara o mesmo golpe em 1954. Eram os mesmos generais, as mesmas forças civis de sempre. No entanto, é notório que Samuel Wainer nunca acreditou que o amigo Jango fosse capaz de levar o país a uma transição pacífica.
Mas ficou ao lado deste até que Goulart voou para a queda, em primeiro de abril de 1964. Samuel Wainer foi muito pichado como oportunista. Na minha opinião, aproveitou as oportunidades dentro de um campo de luta, o campo progressista, seguindo o que acreditava.
O que mais te surpreendeu nos documentos inéditos que descobriu nos arquivos públicos e também nos do Departamento de Estado dos EUA?
Os documentos do Departamento de Estado dos Estados Unidos são muito impressionantes. Encontrei mais de mil páginas sobre Samuel Wainer, que datam dos anos 30, 40 até o período militar. Nos anos Jango, os relatos do poderoso Lincoln Gordon são muito reveladores da influência de Wainer no governo. Ele age ali como o meio de campo, o homem de Jango que tenta negociar apoio dos Estados Unidos. O embaixador inclusive o chama de “Evil Genius”.
Wainer deixou inúmeras contribuições para a imprensa brasileira – quais as que você destacaria
São muitas as contribuições de Samuel Wainer para a imprensa brasileira. Primeiro, suas publicações foram ninhos de talentos, tanto Diretrizes como a Última Hora. Pelas redações de Wainer, passaram gerações de notáveis. Quem não trabalhou para Samuel Wainer? Com a Ultima Hora, jornal lançado em 1951, ele revolucionou em vários sentidos. Introduziu, por exemplo, a diagramação. Também introduziu a fotografia como linguagem, o fotojornalismo propriamente dito. Além disto, trouxe para frente assuntos que não mereciam destaque nos matutinos importantes, como o futebol.
Para se ter uma ideia, jornais como O Correio da Manhã e O Estado de S.Paulo traziam na capa o noticiário internacional. Já a Ultima Hora publicou a primeira foto de time na primeira página, o Fluminense. Muito importante também foi a inauguração de uma conversa direta com o leitor. Por exemplo: a primeira coluna Fala o Povo da imprensa. Para terminar, eu destacaria a valorização da profissão de jornalistas. Pela primeira vez, nomes como Francisco de Assis Barbosa, Nelson Rodrigues e Otto Lara Resende, podiam ter um emprego só. Na Folha, ao escrever sobre a biografia de SW, Álvaro Costa e Silva deu o título: “Jornalistas no Azul”.